Paroxítonas terminadas em ditongo
"Museu da língua estréia com erro. A palavra 'raiz' foi grafada com acento em filme de apresentação." Folha de São Paulo, 21 de março de 2006.
O professor abriu a janela e deixou que a doce brisa marinha lhe subisse às narinas. Era de manhã, e o horizonte não era mais que um borrão róseo. O mar estava calmo, e o sussurar das ondas chegava aos ouvidos do professor difuso como um sonho que se desvanece ao acordar.
O homem se deixou cair na cadeira, tão cansado. Parecia que não dormia há séculos, ainda que tivesse acabado de sair da cama. Apoiou a cabeça na mesa a sua frente e fechou os olhos, as pálpebras tão, tão pesadas.
Difícil dizer quanto tempo ficou assim, porém, dado momento, se apoiando nos braços, levantou a cabeça da superfície lisa da madeira e se pôs de pé com esforço, ainda que não fosse velho.
Deixou que seus pés decidissem por ele o destino a seguir. De repente se viu na cozinha, e suas mãos autônomas abriram a geladeira, pegaram o leite e o derramaram na caneca de sempre. Não tinha fome, mas tomou o leite assim mesmo.
Com um suspiro longo flutuou como um fantasma de volta à sala, e a janela estava de novo à sua frente, e o mar, o mar eterno e calmo, continuava a lamber a praia com suas longas línguas. Afundou novamente na cadeira, e com o olhar na imensidão azul, não pôde deixar de pensar que era mesmo um bom dia para morrer.
Abriu a gaveta e tirou dela a folha branca que deveria conter suas últimas palavras, e com cuidado a deitou na mesa. Pegou sua caneta preferida e a destampou com esmero: tudo deveria ser perfeito.
Após um segundo de hesitação, começou a riscar o papel macio. Escrevia devagar, sua mão parecia tão pesada. Sempre escrevera rápido, as palavras correndo para alcançar o pensamento; mas agora era o fim, e o professor pensou que talvez as coisas fossem assim mesmo no lento, tranquilizador e inevitável fim.
A carta estava pronta. Alisou o papel e tampou a caneta com cuidado. Levantou-se e sentiu o aroma da maresia uma vez mais.
Voltou à cozinha para pegar o derradeiro copo d'água, no qual o veneno escuro foi dissolvido. Flutuou distraidamente até a cadeira, onde, decidido, virou tudo de uma só vez. Sua vista já escurecia, quando então ele viu. Viu aquela anomalia, aquela coisa suja e feia que conspurcava a sua última carta.
Memoria. Ele havia escrito memoria, sem acento. Como? Como?! Como pôde se esquecer da acentuação das paroxítonas terminadas em ditongo? Ele, o professor, que fazia questão de tirar um ponto para cada erro de acentuação que seus alunos viessem a cometer. Tentou em vão agarrar a caneta, mas não conseguia respirar e seus dedos se fachavam em espasmos, enquanto o veneno corroía as vísceras.
Mas o que realmente corroía o professor era a angústia, a angústia de cometer um erro tão banal, e ainda assim não poder consertá-lo.
O professor abriu a janela e deixou que a doce brisa marinha lhe subisse às narinas. Era de manhã, e o horizonte não era mais que um borrão róseo. O mar estava calmo, e o sussurar das ondas chegava aos ouvidos do professor difuso como um sonho que se desvanece ao acordar.
O homem se deixou cair na cadeira, tão cansado. Parecia que não dormia há séculos, ainda que tivesse acabado de sair da cama. Apoiou a cabeça na mesa a sua frente e fechou os olhos, as pálpebras tão, tão pesadas.
Difícil dizer quanto tempo ficou assim, porém, dado momento, se apoiando nos braços, levantou a cabeça da superfície lisa da madeira e se pôs de pé com esforço, ainda que não fosse velho.
Deixou que seus pés decidissem por ele o destino a seguir. De repente se viu na cozinha, e suas mãos autônomas abriram a geladeira, pegaram o leite e o derramaram na caneca de sempre. Não tinha fome, mas tomou o leite assim mesmo.
Com um suspiro longo flutuou como um fantasma de volta à sala, e a janela estava de novo à sua frente, e o mar, o mar eterno e calmo, continuava a lamber a praia com suas longas línguas. Afundou novamente na cadeira, e com o olhar na imensidão azul, não pôde deixar de pensar que era mesmo um bom dia para morrer.
Abriu a gaveta e tirou dela a folha branca que deveria conter suas últimas palavras, e com cuidado a deitou na mesa. Pegou sua caneta preferida e a destampou com esmero: tudo deveria ser perfeito.
Após um segundo de hesitação, começou a riscar o papel macio. Escrevia devagar, sua mão parecia tão pesada. Sempre escrevera rápido, as palavras correndo para alcançar o pensamento; mas agora era o fim, e o professor pensou que talvez as coisas fossem assim mesmo no lento, tranquilizador e inevitável fim.
A carta estava pronta. Alisou o papel e tampou a caneta com cuidado. Levantou-se e sentiu o aroma da maresia uma vez mais.
Voltou à cozinha para pegar o derradeiro copo d'água, no qual o veneno escuro foi dissolvido. Flutuou distraidamente até a cadeira, onde, decidido, virou tudo de uma só vez. Sua vista já escurecia, quando então ele viu. Viu aquela anomalia, aquela coisa suja e feia que conspurcava a sua última carta.
Memoria. Ele havia escrito memoria, sem acento. Como? Como?! Como pôde se esquecer da acentuação das paroxítonas terminadas em ditongo? Ele, o professor, que fazia questão de tirar um ponto para cada erro de acentuação que seus alunos viessem a cometer. Tentou em vão agarrar a caneta, mas não conseguia respirar e seus dedos se fachavam em espasmos, enquanto o veneno corroía as vísceras.
Mas o que realmente corroía o professor era a angústia, a angústia de cometer um erro tão banal, e ainda assim não poder consertá-lo.
5 Comments:
Ha ha, se ferrou!
yeah he did-
e você Charles, é um sádico.
Só com os gramáticos
Aposto que ele tinha acentuado, mas de tão inseguro (afinal, na infância, desejava a mãe e sentia raiva do pai, viva Freud, uhu!), de tão inseguro viu na não acentuação daquela palavra toda a frustração de sua vida consolidada. Ele falhou, se ferrou; e, mesmo sem veneno, não podia fazer nada. Tome.
Yuri é um bom psicólogo.
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