04 novembro, 2007

O mundo através dos cacos de vidro

Entre arranha-céus, auto-móveis e cacos-de-vidro, eu o conheci: parecia um monstro, coberto de folhas e cheirando a podridão. A barba era rala e os primeiros fios de cabelo começavam a cair.
Os vidros refletiam o cotidiano urbano; todos eram retratados, menos Thomás com suas roupas largas e velhas. Tanto importava a cor, verde ou vermelho, os faróis não indicavam a direção para esse forasteiro urbano; a fumaça fazia com que se confundisse com a cinza do asfalto.
Sua aparência lembrava-me uma velhinha, de tão corcunda. Não era derrotado pelo tempo, mas pelo peso da realidade previsível e tediosa que carregava em suas costas.
Cruzei com ele apenas duas vezes na Av. Faria Lima, porém em ambas as situações meus pensamentos pareciam descolar de meu corpo. Quer dizer, não sei quantas vezes passei por ele, mas foi semana passada que eu o vi, realmente, pela primeira vez. Thomás - que depois descobri que gostava de ser chamado Bolandeira – estava brincando com pedaços de vidro coloridos em frente a uma agência dos correios, sentado em uma pose de grande ancião. Seu corpo tinha cortes aparentes pelos braços, pescoço e nas faces. Estava tão concentrado que não reparou na minha vigilância.
Poucos dias depois, e agora com coragem, me dirigi ao Bolandeira e puxei assunto. Perdi a noção do tempo, e reparando que ele não tirava os olhos dos pequeninos quadradinhos coloridos, perguntei-lhe sobre sua fixação por aqueles objetos que para mim não tinham valor.
Naquela mesma noite tive um sonho que não me abandonou:
[Estava em um lugar claro, parecia uma rua, tudo estava embaçado. O sol era enorme, por pouco não chegava a encostar nos picos dos prédios. Do outro lado da rua encontrava-se Bolandeira, na mesma posição que da primeira vez. Meus pés me levaram até ele. O sinal estava vermelho para mim e os carros continuavam a sua sintonia desenfreada, mas isso pouco me importava.
Cheguei a ele, e ele me disse: “Os vidros são os verdadeiros olhos, eles me fazem enxergar. O sol cega a gente e nós não vemos nada do que é”. Eu peguei uns vidrinhos verdes que estavam em suas mãos, arranquei meus olhos e coloquei os pedaços transparentes em seu lugar.
Tudo ficou nítido, mas o céu começou a desfragmentar e cair aos poucos]
Eu acordei.
Eu tinha muito de Thomás e isso era insuportável. A partir desde dia fugi, e fujo dele todos os dias.

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9 Comments:

Blogger muriel said...

muito, muito bom. gostei da parte de arrancar os próprios olhos e colocar vidrinhos no lugar. vc deveria escrever mais, giu!

novembro 04, 2007  
Blogger Charles Bosworth said...

É verdade. Esse é o texto mais imaginativo que eu vi a Giulia escrevendo, e gostei bastante. Brincar com vidros é muito... delicado e violento ao mesmo tempo. Doloroso, sem dúvida. Vidro sempre me pareceu algo doloroso.

novembro 05, 2007  
Blogger Lipão said...

"o céu começou a desfragmentar e cair aos poucos"
Giugiu iniciando sua fase surrealista? Talvez o contexto em que o texto foi escrito me ajude a compreendê-lo melhor. Ou talvez isso seja desnecessário. Sei lá.
Mas sem dúvida tá belo.

novembro 06, 2007  
Blogger Giulia T. said...

você pode não acreditar, mas era aquela proposta da lenin-rá, que gerou tanta polêmica por causa de outro texto.. de autoria do cara que estava ao meu lado na hora da execução...

novembro 06, 2007  
Blogger Utak said...

o cara copiou de você?
bom, esse texto é sinistro!
muito bom por sinal

novembro 08, 2007  
Blogger Lipão said...

Tomás da Bolandeira!

novembro 08, 2007  
Blogger Thomás said...

Giugiu, continuo a te olha com aquele olhar de reprovação! Hehe!

Ass: Senhor Berílio Todo

novembro 10, 2007  
Blogger Giulia T. said...

não, não ugo.
o berílio todo estava ao meu lado enquanto eu escrevia este texto.
nós estávamos executando a proposta sobre moradores de rua, e o thomás resolveu escrever aquele texto polêmico sobre o assunto, que está no copo.

e senhor, vc pode até me olhar com reprovação, mas não vai ganhar nenhuma parte dos direitos autorais.

novembro 11, 2007  
Blogger Ozzer Seimsisk said...

Muito bom, mesmo.

janeiro 13, 2008  

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