Eternidade
O Senhor Ilustre Catedrático parou diante do espelho e posou. Tirou o pó dos ombros, do cocuruto e dos bicos dos sapatos. Vestiu a beca, finalmente. O preto sob o púrpura lhe caía bem, ressaltando suas feições e cabelos alvacentos. A eterna repetição daqueles movimentos fazia com que ele sentisse que fora ontem a última vez que ele portara aquelas vestes quase sacerdotais; mas, na verdade, ele sabia que já fazia algum tempo.
Ah, mas nada substituía a sensação de entrar no auditório, naquele Templo da Razão, pela porta localizada atrás do palco. A visão frontal das cadeiras da platéia, envolvida por veludo púrpura. Não era inesperado o uso constante da palavra imponência.
Recentemente, no entanto, aquele mesmo catedrático que não deixava de se deslumbrar com a sua vista privilegiada, passou a notar algo que se poderia chamar de muxarabiê* se impondo entre o palco e a audiência.. Quando mesmo foi abandonado o código de vestimenta para os alunos?
Então, já sentado à frente de seu espaldar alto, ele sentiu aquele vazio do lado esquerdo. O que acontecera ao outro ilustre catedrático a quem aquele assento se destinava? Muitos haviam morrido, outros simplesmente desistiram.
Antes, porém, que ele pudesse pensar ele mesmo em desistir ou morrer, o soar do início da cerimônia o interrompeu. Seria bela, como sempre. Todos os cumprimentos cerimoniosos, as formalidades e o rebuscamento lhe pareciam, também, de certa forma acolhedores. Apesar de, sempre, imponentes.
À hora do primeiro pronunciamento, todos se mostraram enlevados. Foram, de fato, belas palavras; o ambiente, com seu pé direito tendendo ao infinito não pôde deixar de demandar o uso das palavras “alarido”, “patuscada” ou, quiçá, “quiçá”.
De repente, o Senhor Catedrático foi arrancado de seu transe por uma moça de uniforme. Então eles estavam servindo café durante a cerimônia, agora. Uma inovação muito prática, certamente. Porém, o café talvez não fosse eficiente para evitar outro daqueles estados hipnóticos, já que ele reparou que estes eram induzidos pelo ritmo regular do piscar de uma das lâmpadas de um dos castiçais.
Durante a adoração de um grade literato cuja imponente imagem se encontrava atrás do palco, mais uma reflexão acometeu-lhe: como eram abertas as majestosas cortinas localizadas a uma altura inalcançável? Com certeza alguém saberia como. Foi então que seus olhos cruzaram com os de alguém na platéia, entre duas expressões de disfarçado enfado, que perfuravam as mesmas cortinas com sua concentração. Sim, mais alguém refletia sobre a mesma questão.
O Catedrático tomou displicentemente mais um gole de seu café e soube que, por essas e outras razões, toda aquela imponência continuaria a ser repetida e apreciada para sempre.
*palavra de origem moura que designa “balcão em balanço na fachada de uma construção, protegido de cima a baixo por gelosias, para resguardar da luz, calor e devassamento a partir da rua” (Houaiss)
9 Comments:
De onde será que eu tirei a inspiração para escrever isso?
certamente é o primeiro post de nível universitário, querida sanfranista!
algo me diz que a inspiração foi o salão nobre da sanfran...
gostei do texto, tem um estilo diferente das suas outras produções (ou será que inaugurou-se uma nova fase literária?)
quando eu tava lendo aquela parte do café e da luz piscando, me deu a impressão de que o catedrático estava num hospital/asilo imaginando tudo aquilo...
oh não, essas duas partes aconteceram mesmo. Na verdade a maioria das situações descritas é real, eu não seria capaz de tirar da minha própria cabeça "alarido" e "patuscada".
quanto ao estilo, eu não fiz necessariamente um esforço para ficar assim, mas no final eu também reparei que ficou diferente (o que será que causou isso?). mas espero que tenha combinado com a história.
a coisa foi tão surreal, eu tinha que escrever...
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"Não posso dissimular a emoção que experimento ao achar-me após tão longa ausência no recinto desta Faculdadeque foi minha alma mater, o lugar em que verdadeiramente aprendi as regras do Direito e do Dever" (Barão do Rio Branco).
que medo!
comentários bizarros retornam, mas esse não está morto...
Finalmente alguém que não um anônimo ou um membro da equipe editorial comenta algo aqui!
Camila, a São Francisco está te fazendo bem?
Doidera pura. Me lembrou Brumas de Avalon, se é que é possível. Andas não comendo carne?
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