16 maio, 2008

Prelúdio número 15 em Ré Bemol Maior

Era um vale. Entre um conjunto de redondas colinas verdes e outro de montes azulados. Verde da cor da grama e azul-montanha. Talvez fosse uma depressão; os que ali viviam não saberiam a diferença.
O Sol brilhava, uma luz de inverno nórdico. Branca, fria, do tipo que torna a visão absolutamente precisa.
E ventava. Não era uma brisa, era um vento vindo não sei de onde que, toda vez que chegava, batia no lençol estendido no varal e retrocedia. O lençol era levado, por este fato, a flamular. Chicoteava a si mesmo no ritmo regular dos ares inquietos.
A princípio não se ouvia nada. Mas o ouvido de um artista, já avisado, logo percebia por sob o alarido das flores esvoaçantes e dos chocalhos fluidos, aquele ritmo emanado pelo mundo.
O ouvido treinado saberia que aquilo não era a ida e vinda do lençol que torturava a si mesmo (apesar deste fato exemplificar perfeitamente os efeitos da batida natural), nem o toque de um galho em seu vizinho, aproximados, também pelos humores atmosféricos.
O ouvido da moça que passava não era, porém, treinado. Ela passou, indiferente ao tempo regular decorrido entre a primeira metade de seu passo e a segunda, consonante com todo o resto.
Seus passos leves, seus sapatos leves mal podiam ser vistos por sob seu vestido. Ela era uma figura monocromática, algo entre o branco e o amarelo; até os cabelos que esvoaçavam, chicoteando como o lençol.
Ela também não se deu conta do fato de cada um de seus passos coincidir com um pingo de água saindo da montanha. Tudo era parte dos sons...normais. Vez ou outra, um pássaro dava uma pirueta no ar e emitia um trinado, não uma batida, que não deixava de ser mais que um adorno.
O mundo pulsava. Todas as criaturas, vivas ou não, pareciam perceber e se inserir. A moça não percebia. Mas o lençol, os pingos, os galhos influenciavam-na. A roupa que ela lavava era levada e trazida pela correnteza; logo, a moça começou a sovar o pano de acordo com o ritmo pulsante, sempre.
Mas ela não percebia.
E os humores atmosféricos pareciam se incomodar com o fato. Eles pareceram explodir em um esforço para chamar a atenção da figura humana, que, singelamente, prendia os cabelos com um lenço, assim que o vento começou a fustigá-los com mais violência. Ela se sentiu despertada, mas ainda sem saber de onde vinha a sensação.
Isso não era suficiente.
Nuvens começaram a se chocar com estrondos. Cinco deles se sucederam antes de surgirem os primeiros fragmentos de água à altura do rosto de uma pessoa. Então, a moça os sentiu.
Os estímulos da luz, do som, do toque frio das gotas, todos combinados, exerceram seu efeito sobre ela. Era latejante. Ela se sentiu impelida a algo. Ao sabor do som do mundo ela se sentia uma marionete sendo levada contra sua vontade... ela resistia, mas algo ribombava em sua cabeça. Latejante. Os fios puxando.
Ela, exasperada, se levantou e andou, correu, seus pés batendo com força na terra, sem mudar o ritmo. Ela chorou. E, então, ela percebeu que seus soluços se adequavam perfeitamente ao latejar, ao pulsar, ao ritmo.
Ela desabou. Diante do descobrimento de que aquilo do que fugia estava tão profundamente incrustado nela. O som retumbante, quase tétrico, continuou impiedosamente, até que, aos poucos, cessou.
Já era suficiente.
Só que ele não cessara. A moça olhou em volta e reparou que o Sol voltara a brilhar, o rio voltara a correr, os galhos a se chocar, os pingos a cair, o vento a açoitar. A moça já estava avisada. Seus ouvidos e todo o seu corpo foram treinados. Ela sabia que o mundo pulsava, escondido atrás da...normalidade.
Mas ela sabia. Todos sabiam. Ela sabia que todos sabiam. Era angustiante saber. Saber e não poder fugir. Estava em todo lugar.
Agora, só lhe restava continuar a viver sua vida.

17 Comments:

Blogger muriel said...

"Ela sabia que o mundo pulsava, escondido atrás da...normalidade"

gostei das imagens e idéias: o lençol torturado pelo vento, o ritmo surdo e constante de todas as coisas.

agora, que é estranho é... apesar de ser extremamente original, se parece um pouco com o texto da Giulia, e com o que eu tinha pensado pro próximo esboço. Será a essência MUCAGI se manifestando nas letras?

maio 17, 2008  
Blogger Giulia T. said...

hahahhaha, é verdade!
o começo lembra muito o "sidarta e os picos aveludados" também...
quem sabe, é um estilo literário nascente: mucagismo!

maio 18, 2008  
Blogger Camila T. said...

um dia estaremos nos livros didáticos (de literatura, psicologia e parapsicologia...)

alguém ouviu a música? alguém viu alguma relação?

maio 18, 2008  
Blogger muriel said...

sim! a música começa suave, melodiosa, depois ela evolui para uma fase mais furiosa, e então volta a ser suave. Como o texto.

maio 18, 2008  
Blogger Lipão said...

É tanta literatura sofisticada, tanta figura de linguagem que eu nem sei mais o nome, tanta imagem, idéia, som e cor, que essa humilde latrina um dia acaba por entupir e transboradar. Parabéns, mucagistas, mas tenham cuidado com essas aventuras!

maio 18, 2008  
Blogger Inominado ou Metanome ou um heterônimo (de-mim-mesmo) said...

Este comentário foi removido pelo autor.

maio 19, 2008  
Blogger Inominado ou Metanome ou um heterônimo (de-mim-mesmo) said...

Como disse a Muriel, "o lençol [é]torturado pelo vento" e não "Chicoteava a si mesmo" ou "torturava a si mesmo" como o texto diz.
Tirando esse comentário um tanto desagradável, faço minhas as palavras lipônicas e acrescento fazendo um paralelo; assim como - diriam Max e Hegel- a História se repete: a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, a estória também se repete: a primeira como Giulia, a segunda como Muri e a terceira, não menos trágica, como Camila.

maio 19, 2008  
Blogger muriel said...

Devo dizer que não entendi os comentários de Lipão e Philipson. Os textos têm similaridades, mas estão longe de serem iguais, ou não-originais. Talvez fosse necessária uma segunda leitura, mais atenta às particularidades e sutilezas de cada um. Além disso, não tem nada de literatura sofisticada aqui, peloamordedeus. Se tivesse, não estaria numa latrina.

Com todo o respeito, citar Marx (Max?!) é infeliz demais. Essa teoria da tragédia e da farsa já é medonha quando aplicada à História, quando se refere à estória então...

(engraçado como quando tinha vários textos latrinescos seguidos ninguém reclamava)

maio 20, 2008  
Blogger Lipão said...

Não estou reclamando. Como já disse em outro momento, o espaço para os comentários tem o nome de descarga. Portanto, o que digo são ironias e comentários bobos que passam pela minha cabeça, nem sempre condizentes com uma visão crítica da realidade ou mesmo com minha opinião. Eu quis apenas celebrar de forma irônica o nascimento do que a Giulia chamou de "mucagismo". Não tenho nenhuma preferência por textos propriamente "latrinescos", embora sem dúvida sejam mais fáceis de ler.

maio 20, 2008  
Blogger Camila T. said...

faço minhas as palavras da Muri.

mas também não entendi o começo do comentário do Philipson. teria sido isso uma crítica à moda dos corretores de redação?

maio 20, 2008  
Blogger Giulia T. said...

Eu já conversei com a muri e com o phito, mas achei melhor explicitar a minha opinião:
sobre o comentário do lipão eu não tenho duvida nenhuma, não se preocupe: eu adoro a acidez de seus comentários e o usos das analogias latrinescas e entendi perfeitamente!
sobre o comentário do phito: eu acho que muda totalmente o sentido da frase, não está errado gramaticalmente e acho que falta abstração literária (o uso de marx foi uma lástima).
sobre os comentários da muri e cacá: eu acho que vcs podiam ficar menos na defensiva. e na leitura do comentário do lipão, pobrezinho, faltou um pouco de senso... ele não disse nada de mais... me corrija se eu estiver errada: ele falou pra termos que ter cuidado pra latrina não vazar, pq andamos postanto muito ultimamente. e mesmo que não concordamos com os outros, é só argumentar e não desconsidera-lo.

maio 22, 2008  
Blogger Thomás said...

Acho que o Phito está certíssimo, e só vocês que não entenderam que Max é o nosso amigo Max Schenkman!
A frase está corretíssima e reflete a dura realidade socio-econômica monetarista da nossa sociedade moribunda.

Que tragédia, que falácia!

Inclusive, acho que descobri uma terceira coisa: é alguma das três que escreve todos os textos sob a ordem das demais, que a agridem caso não publique. Qual das três será? Creio que apenas uma Comissão Parlamentar de Inquérito poderá chegar a uma conclusão.

Sim, estou sob efeito de entorpecentes...

maio 23, 2008  
Blogger Thomás said...

Obs:

Imaginem o que o visitante açoriano (pra quem não sabe, da Ilha de Açores) está pensando dessa inescrupulosa Latrina...

maio 23, 2008  
Blogger Lipão said...

Max também pode ser o Max Weber, plagiando seu antecessor e conterrâneo. E devo dizer que o camarada B é o campeão das descargas sem sentido e absurdas. Pinochet e Mussolini que o digam. Quanto aos visitantes açorianos, acho que eles não precisavam ter escrúpulos de dar também suas descargas.

maio 25, 2008  
Blogger Inominado ou Metanome ou um heterônimo (de-mim-mesmo) said...

Essas descargas pode constituir o primeiro facísculo do "Aprendendo a reagir a críticas (e piadas) com as latrineiras"

E Max é Marx com um erre digitado a menos. Mas poderia ser Max Horkheimer também.

E eu não entendi porque tanto burburinho, será que as latrineiras estão com dor de barriga?

junho 01, 2008  
Blogger Inominado ou Metanome ou um heterônimo (de-mim-mesmo) said...

"essas descargas *podem..."
antes que desqualifiquem a minha descarga por causa de um erro de digitação infantil.

junho 01, 2008  
Blogger Camila T. said...

Então tá, hora do mea culpa...é o que dá responder ironia com mais ironia: algumas pessoas podem se peder no caminho e achar que alguém estava falando sério (não é mesmo, Giulia?). Mas é um risco que se corre; e, na minha modesta opinião, a Latrina não seria a mesma se seus frequentadores procurassem evitar tal risco.
Não peço desculpas pois o pedido poderia se contaminar com um eventual sarcasmo contido no resto da mensagem e eu poderia ser, novamente, mal entendida; desta vez, pela razão inversa.

junho 08, 2008  

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