Vermelho
As pessoas passam tão rápido por mim que tenho a impressão de que elas se esvanecem assim que não posso mais vê-las. Meus pés autônomos me conduzem pelas ruas labirínticas. Um riquixá atravessa a rua. É como se eu nadasse contra a correnteza de um rio. Mas não é um rio silencioso. As vozes dos transeuntes se misturam aos gritos dos vendedores. Galinhas, cães e porcos contribuem para a ladainha que se suspende no ar. Este é o coro matinal. As pessoas escorrem por todos os espaços. Por todas as frestas. Por todas as rachaduras destas vielas. Uma carroça carregada de panos coloridos se desequilibra e cai. Metros de tecido amarelo se desenrolam pela rua. É um rio de ouro. Acho que um dia também serei tragado por estas ruas. Também irei me desvanecer quando ninguém olhar para mim. Todos estão atarefados hoje. Mais do que nos outros dias o mundo se descortina em uma explosão de som e cor. É sempre assim na véspera do Ano Novo.
Tudo silencia no momento em que fecho a porta.
Tiro minhas sandálias e coloco meu ábaco de lado. Sempre vivi aqui, mas me sinto desconfortável em fazer qualquer tipo de barulho; parece que o silêncio faz parte da casa - acho que ele sempre esteve aqui... Me pergunto se um dia irá embora.
Avanço pé ante pé. É de novo como um labirinto, mas sem divisões visíveis - apenas quem viveu aqui a vida inteira sabe onde pisar para que o gemido do assoalho não perturbe o silêncio.
Quando entro no jardim as vozes e as pessoas da rua já me parecem tão distantes, como lembranças de anos atrás. Meu mundo mais uma vez é o que vejo, e só isso. Não existe mais nada além deste jardim e meu avô.
Sempre que volto da escola encontro meu avô assim, sentado em um banco alto, escrevendo em sua mesa. Ele levanta ligeiramente a cabeça; é o sinal de que me viu, e agora posso me aproximar.
Meu avô, como sempre, não diz nada. Apenas escreve. Vejo como o pincel macio serpenteia lentamente, desenhando curvas de tinta negra. É extremamente difícil guiar o pincel em um retângulo de papel tão pequeno, e ao mesmo tempo dar vida a cada traço.
Um dia serei eu no lugar do meu avô, e meu neto depois de mim, ou pelo menos assim deveria ser se não fosse pela minha caligrafia trêmula e irregular. Os pedaços de cerâmica que uso para praticar estão amontoados em um canto do muro, como um lembrete constante da minha inabilidade. Na verdade, a idéia de substituir meu avô me parece absurda - ele é eterno. Tenho a sensação de que ele vai estar para sempre aqui, sempre ocupado com as minúsculas linhas escuras e sinuosas.
Ele me entrega um papelzinho. A tinta está molhada, e com muito cuidado o prendo no enorme varal. Ali estão centenas de papeizinhos a secar, quadradinhos brancos refletindo suavemente a luz do sol. Seriam absolutamente iguais se não fosse o escrito em cada um - as mensagens nunca se repetem.
Volto a olhar meu avô. Ele já está escrevendo de novo, no mesmo ritmo imutável, sempre debruçado sobre a mesa, esculpindo as palavras.
Dou a volta no varal, que é mais alto do que eu e está coberto de papéis, pendurados nas cordas finas que vão do chão até em cima. Escolho um ao acaso e leio:
Raiz funda não sofre o frio
O que isso quer dizer? Talvez o mais difícil não seja dominar os segredos do pincel, mas sim entender o significado inescrutável dessas mensagens.
Uma lufada de vento agita as folhinhas brancas, que por instante ruflam como passarinhos prestes a alçar vôo. Posso imaginar uma revoada de pássaros de papel, tão pequenos, mas que voariam juntos até cobrir o sol, para então dispersarem-se no ar levando mensagens de prosperidade e fortuna até terras longínquas.
Contudo o vento vai embora, e estes papéis inquietos continuam aqui.
Meu avô continua escrevendo, e eu continuo pregando-os no varal, sem realmente entender o que está escrito neles.
Meu avô levanta de novo a cabeça: é hora de recolher aqueles que já secaram.
Pego a cesta que está do lado do varal. No momento em que coloco as mãos no primeiro papel tenho a sensação de que ele vai se desvencilhar dos meus dedos e fugir pelo ar, mas o coloco dentro da cesta e nada acontece, como se ele tivesse subitamente se resignado ao seu destino.
Demoro a tirar todos os pássaros, ou os papéis, não sei mais. Aos poucos o sol desliza no horizonte, e quando a cesta está cheia sei que devo sair de novo.
De novo seguirei pelas ruas escuras e sinuosas, até chegar à loja de biscoitos. Por enquanto é só isso que eles são, biscoitos apenas, mas assim que tiverem dentro deles as mensagens que meu avô se dedica a escrever se transformarão em biscoitos da sorte.
Abro a porta, pronto para sair, mas antes de me submeter à vontade dos meus pés e enveredar pelas vielas, me permito ficar aqui por um instante. É neste momento em que todos os caminhos se abrem para mim, e eu ainda não fiz a escolha. Gosto da sensação de possibilidade. As ruas estão vazias enquanto as pessoas, em suas casas, se preparam para o início das festividades. Vejo as lamparinas penduradas nas casas, irradiando suavemente uma luz bruxuleante como se fossem as próprias expectativas que preenchem estas últimas horas. Minha mão desliza para a cesta, e remexo os papéis antes de pegar um.
Lá atrás a casa
Em frente o mundo
Fico um bom tempo olhando para o papelzinho. Sempre antes de sair para a entrega acabo pegando uma das mensagens. Invariavelmente seu sentido será duvidoso. Seguirei pelas vielas, tentando não pensar mais em coisas que não tenho como saber. Mais cedo ou mais tarde, porém, me refugiarei na certeza de que ano que vem, independentemente do que aconteça durante os doze meses, nas últimas horas tudo será como é agora. Mas o papelzinho continua em minhas mãos, e dessa vez me pergunto se foi mesmo apenas o acaso ou se há afinal um sentido predestinado que se manifesta no final do ano.
Então, no final da rua, sob o lusco-fusco das lamparinas, o varal de meu avô se estende diante de mim com uma nitidez assustadora. A luz difusa se reflete no branco dos papéis. Eles são tantos... Um sopro de vento vem suave, e todas as mensagenzinhas se agitam com um som de bater de asas. Tenho que colocá-las na cesta, tenho que recolher todas, mas aos poucos os papéis se soltam
Ouve a terra, as nuvens
e planam no ar. Quanto mais tento agarrá-los mais eles se soltam, cada vez
Talvez te espere noutra
mais rápido,
esquina/Porta secreta ou nova sina
não consigo ver direito
O mundo é grande
no meio deste redemoinho de papel,
e pequeno
estendo minhas mãos
Não há nada para
para pegá-los mas
mudar o ânimo
eles escorregam por entre os dedos
como uma viagem de verão
e no fim vão todos embora em revoada.
Pisco os olhos uma, duas, três vezes. Estou na frente da loja de biscoitos, e os papeizinhos estão na cesta, imóveis.
Estas últimas horas são as mais incertas, indefinidas.
Levanto o punho e bato na porta.
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2 Comments:
que lindo e...vermelho...
adoro esse final que é angustiante, mas acaba sendo tranquilizador, mas no fundo é mesmo angustiante. eu acho.
o final é genial.
me lembrou aquela exposição sobre a china, lembra?
por que será que o oriente nos fascina tanto? um dia, vamos juntas pra lá?
nossa, como eu quero comprar um livro seu .
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