Violeta
A música parecia ser a única coisa real ali dentro. Ela espiralava no ar, lenta, sonolenta, sonâmbula, só para então ressurgir furiosa, impetuosa, impiedosa.
Absurdamente doce, apesar de tudo.
Ele gostava do jeito que as cordas do contrabaixo vibravam, tornando-se um borrão sob os dedos do músico. Gostava de como se criava o som a partir do indiscernível.
Havia algo de reconfortante em sentar-se em uma daquelas cadeiras carcomidas e, com os olhos fechados, seguir a trilha das notas que exalavam do contrabaixo. Ouvi-lo era como ouvir passos a distância. Como ouvir passos em sonhos.
Para chegar até ali, o homem havia seguido por ruas inúmeras, pelas inúmeras ruas da cidade, ruas molhadas de chuva em que se refletiam os faróis e as luzes dos carros, como uma impressão difusa e úmida de olhos vidrados.
Ali dentro, as mesas e cadeiras estavam protegidas pela penumbra suave. De um lado, o palco em que os músicos tocavam banhados por uma luz amarela e pesada como a lua lá fora; uma luz que dançava por sobre as superfícies, as peles, as madeiras, os metais, o som. Do outro, atrás do balcão, o grito histérico dos néons ressoava através dos copos e taças enfileirados nas prateleiras. O vidro amplificava a luz, e também a distorcia.
O homem estava no carro, tamborilando os dedos no volante. Tinha tido o cuidado de estacionar a uma distância segura, em um lugar em que se via a rua toda. A rua se abria para ele, inconsciente. As pessoas andavam por ela, iam para onde deveriam ir, para onde queria ir, e não sabiam, jamais poderiam saber que ele estava ali.
Em um dos prédios baixos, uma mulher abriu a cortina, e seus olhos varreram a paisagem enquadrada pela janela. No carro, o homem já estava com a câmera em mãos.
A mulher debruçou-se sobre o parapeito.
Essa foi a primeira foto.
Então um homem surgiu atrás dela. Ela se virou.
Essa foi a segunda foto.
O homem avançou alguns passos e lhe tomou a mão. Seus lábios se mexeram silenciosos e a mulher riu, mas não era possível ouvir sua risada.
Foto.
O homem puxou a mulher para perto de si com um único movimento fluído, despreocupado.
Ela riu de novo. As bocas se juntaram, no meio do riso que não se podia ouvir.
Foto.
Os dois giraram, enlaçados. O homem estava de costas para a janela. O dedo já pressionava o botão da câmera, prestes a disparar, quando de súbito a mulher abriu os olhos.
Essa foi a última fotografia.
Só depois, sob a luz vermelha do quarto escuro, é que viu que a mulher, do outro lado da rua, olhava diretamente para a câmera. Ele sabia que ela não poderia tê-lo visto, mas aquela ilusão, aquele acaso tornava a fotografia impossível, intolerável.
Ali dentro, as mesas e cadeiras estavam protegidas pela penumbra suave. De um lado, o palco em que os músicos tocavam banhados por uma luz amarela e pesada como a lua lá fora; uma luz que dançava por sobre as superfícies, as peles, as madeiras, os metais, o som. Do outro, atrás do balcão, o grito histérico dos néons ressoava através dos copos e taças enfileirados nas prateleiras. O vidro amplificava a luz, e também a distorcia.
O homem estava no carro, tamborilando os dedos no volante. Tinha tido o cuidado de estacionar a uma distância segura, em um lugar em que se via a rua toda. A rua se abria para ele, inconsciente. As pessoas andavam por ela, iam para onde deveriam ir, para onde queria ir, e não sabiam, jamais poderiam saber que ele estava ali.
Em um dos prédios baixos, uma mulher abriu a cortina, e seus olhos varreram a paisagem enquadrada pela janela. No carro, o homem já estava com a câmera em mãos.
A mulher debruçou-se sobre o parapeito.
Essa foi a primeira foto.
Então um homem surgiu atrás dela. Ela se virou.
Essa foi a segunda foto.
O homem avançou alguns passos e lhe tomou a mão. Seus lábios se mexeram silenciosos e a mulher riu, mas não era possível ouvir sua risada.
Foto.
O homem puxou a mulher para perto de si com um único movimento fluído, despreocupado.
Ela riu de novo. As bocas se juntaram, no meio do riso que não se podia ouvir.
Foto.
Os dois giraram, enlaçados. O homem estava de costas para a janela. O dedo já pressionava o botão da câmera, prestes a disparar, quando de súbito a mulher abriu os olhos.
Essa foi a última fotografia.
Só depois, sob a luz vermelha do quarto escuro, é que viu que a mulher, do outro lado da rua, olhava diretamente para a câmera. Ele sabia que ela não poderia tê-lo visto, mas aquela ilusão, aquele acaso tornava a fotografia impossível, intolerável.
O pianista jogou a cabeça para trás, o pescoço uma curva gentil. Os olhos estavam fechados, apertados. As mãos deslizavam ágeis pelas teclas até que, seguindo um tropeço no ritmo, se suspenderam no ar acima do teclado, trêmulas. No instante seguinte estavam de volta, como se nunca tivessem parado. As pálpebras se fecharam com mais força.
De qualquer forma, tocar era sofrido.
Ele havia tirado o chapéu assim que passara pela porta. Encontrou diante de si as familiares cadeiras e mesas, o palco amarelo e o homem atrás do balcão, que levantou os olhos por um segundo apenas, antes de voltar a limpar um copo com um pano encardido.
Caminhou até uma das cadeiras e sentou-se, colocando sobre a mesa a câmera e a fotografia terrível. Por alguma razão, não conseguia se separar dela – andava com ela no bolso e, apesar de evitar vê-la, às vezes não resistia. Então era como se seus olhos queimassem com uma dor aguda, e ele a guardava de novo, limitando-se a tocar nela com as pontas dos dedos.
O homem continuava absorto em sua limpeza com o pano sujo; ali do lado, uma mulher debruçada no balcão, a cabeça pousada nos braços. À sua frente, um copo pela metade.
A voz do saxofone irrompeu numa única nota, límpida e triste. Ele agarrou a fotografia.
Atrás do balcão, o outro homem parara de limpar, e olhava para o palco com as pálpebras pesadas, como se admirasse um horizonte distante. Sua figura estava escura contra a luz fria dos néons, que parecia irradiar dele como um halo sinistro.
No rosto da mulher, uma lágrima escorria ao ritmo do blues. Ah, nada como a violência sutil e corrosiva do amor e das violetas.
Se o que a corroía fosse uma dúvida, talvez ele pudesse ajudar. A suspeita e a imaginação são as mais cruéis, pensou, mas eu poderia acabar com isso. Trazer a prova. Destruir as dúvidas. E nem cobraria nada. Não cobraria dela.
Seria mais uma fotografia terrível?
Num movimento sincopado, os sons agudos e lânguidos do piano embalam a base tribal do baixo, por sobre a qual desliza o lamento do saxofone. A música ondeia no palco amarelo; dilata-se e contrai-se, espalha-se pelo ar, incerta.
O homem voltou a limpar com seu pano encardido.
A mulher não está mais lá. No balcão, apenas o copo vazio.
O homem pega a câmera e, nos braços da penumbra, tira uma foto do palco. Mais tarde, no quarto escuro, perceberá como as sombras dos músicos parecem fantasmas à espreita, e como as cordas do contrabaixo se congelam imóveis e curvas em sua distensão.
Mas neste momento tudo é sombra, exceto talvez o que se pode ouvir.
Pousa a câmera na mesa. Hoje, e apenas hoje, ficarei aqui, onde o amanhã não precisa existir.
De qualquer forma, tocar era sofrido.
Ele havia tirado o chapéu assim que passara pela porta. Encontrou diante de si as familiares cadeiras e mesas, o palco amarelo e o homem atrás do balcão, que levantou os olhos por um segundo apenas, antes de voltar a limpar um copo com um pano encardido.
Caminhou até uma das cadeiras e sentou-se, colocando sobre a mesa a câmera e a fotografia terrível. Por alguma razão, não conseguia se separar dela – andava com ela no bolso e, apesar de evitar vê-la, às vezes não resistia. Então era como se seus olhos queimassem com uma dor aguda, e ele a guardava de novo, limitando-se a tocar nela com as pontas dos dedos.
O homem continuava absorto em sua limpeza com o pano sujo; ali do lado, uma mulher debruçada no balcão, a cabeça pousada nos braços. À sua frente, um copo pela metade.
A voz do saxofone irrompeu numa única nota, límpida e triste. Ele agarrou a fotografia.
Atrás do balcão, o outro homem parara de limpar, e olhava para o palco com as pálpebras pesadas, como se admirasse um horizonte distante. Sua figura estava escura contra a luz fria dos néons, que parecia irradiar dele como um halo sinistro.
No rosto da mulher, uma lágrima escorria ao ritmo do blues. Ah, nada como a violência sutil e corrosiva do amor e das violetas.
Se o que a corroía fosse uma dúvida, talvez ele pudesse ajudar. A suspeita e a imaginação são as mais cruéis, pensou, mas eu poderia acabar com isso. Trazer a prova. Destruir as dúvidas. E nem cobraria nada. Não cobraria dela.
Seria mais uma fotografia terrível?
Num movimento sincopado, os sons agudos e lânguidos do piano embalam a base tribal do baixo, por sobre a qual desliza o lamento do saxofone. A música ondeia no palco amarelo; dilata-se e contrai-se, espalha-se pelo ar, incerta.
O homem voltou a limpar com seu pano encardido.
A mulher não está mais lá. No balcão, apenas o copo vazio.
O homem pega a câmera e, nos braços da penumbra, tira uma foto do palco. Mais tarde, no quarto escuro, perceberá como as sombras dos músicos parecem fantasmas à espreita, e como as cordas do contrabaixo se congelam imóveis e curvas em sua distensão.
Mas neste momento tudo é sombra, exceto talvez o que se pode ouvir.
Pousa a câmera na mesa. Hoje, e apenas hoje, ficarei aqui, onde o amanhã não precisa existir.
Marcadores: Esboços cromáticos
9 Comments:
como vc pode me pedir opinião sobre o seu texto?
eu gosto muito do som do contra-baixo, principalmente no blues, por isso sou suspeita pra declarar: eu gostei muito, muito mesmo!
Acho que agora esse é o meu favorito. Li ouvindo uma música muito gostosa e suave (mas rápida também) e isso ajudou a criar uma história divertida. Gostei, mas talvez tenha ficado um pouco confuso sobre o lugar onde se passava.
Minha parte favorita foi a da moça sendo fotografada.
engraçado... a parte que me deixou mais receosa foi justamente a da mulher sendo fotografada, fiz várias versões e nada parecia cair bem. De fato algumas partes podem não estar muito claras, mas preferi deixar assim. A primeira versão esclarecia mais as mudanças de tempo e lugar, mas me pareceu óbvio demais.
desculpar-me-ei, pois não estou com capacidade fisica ou mental para ler seu post, mas venho para responder teu comentário.
Gostei de saber que ainda há almas vivas que lêem meu blog e comentam, e ainda mais com espírito crítico.
Ah, quando não tem rima é porque a rima é muito mais sonora e fonética que gramatical mesmo.
Quanto a seu texto, lê-lo-ei outro dia, ok?
bjos
o texto é ótimo, é claro.
mas dessa vez eu não consegui identificar a cor, como das outras...não sei porque, na verdade seria bastante esperado que a cor combinasse com a situação, mas eu não consegui vizualizar. estranho, não?
Uma verdadeira merda, no sentido latrinal do termo.
Gostaria de saber se um dia haverá o "todas as cores" ou o "vermelho-verde" ou algo assim. Se é que me entende.
Confesso que algumas partes ainda me estão obscuras, apesar de que uma segunda leitura elucidou muitas coisas...
nada como uma bela merda numa latrina anojosa. Obrigada!
Confesso que não tinha pensado em misturar cores... se bem que o resultado pode ser interessante!
não acredito que as pessoas estão lendo este texto, e mais de uma vez ainda por cima (a partir de agora vou me tornar uma david lynch literária! huahahah)
hahahha, david lynch literária? ahhahahha... cadê o "cetim rosa"?
é o recorde dos esboços, muri!
Não conheço esse tal de David Lynch, mas ele parece ser um bom obreiro, no sentido latrinal do termo, pelo que dizem.
Acredito que seria uma boa misturar as cores, tornando a sinestesia uma meta-sinestesia, se é que me entende.
Vocês já viram "A liberdade é azul", "A igualdade é branca" e "A fraternidade é vermelha", uma trilogia em comemoração aos 200 de revolução francesa? Se não, deveriam ver, é uma idéia bem parecida e interessante. Fica a dica.
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