15 junho, 2008

Amarelo

correr
os pés correm sobre a terra morna o aroma áspero das flores se faz ouvir no zumbido dos besouros a menina corre encosta abaixo os galhos secos dos arbustos arranham seus tornozelos rasgam a barra do vestido florido a tarde se despede

Não havia nada mais bonito.
A seda branca se esparramava até o chão, leve, e a luz se estilhaçava nos arabescos das rendas.
Ela tocava o próprio corpo como se não pudesse acreditar no tecido que a envolvia, como se não pudesse acreditar que chegara a hora.
Virou-se para o espelho, ansiosa. Seu reflexo lhe descortinou inúmeras possibilidades, todas igualmente aprazíveis e palpáveis. Sorriu para o contrário de si mesma com toda a felicidade que tinha dentro de si e, com um estalo inaudível, uma rachadura percorreu todas as coisas, irremediavelmente.
Ela nunca me sorriu assim.

Já não faz diferença a dor nos tornozelos, não mais.

De repente, naquele mundo quebrado, o vestido florido pareceu obscenamente simples e feio.

As sombras se alongam sobre a terra, e a partir delas os insetos tecem a noite. Ouve-se um repicar de sinos, sob o qual se degusta o fluido macio das cantilenas amenas, entoadas lá de longe, onde as pessoas dançam e celebram, absoluta e miraculosamente inconscientes de tudo aquilo que não se vê no momento presente.
A música se desprende dos corpos dançantes, pegajosa, e desliza pelo vale, estica seus braços até não mais poder, até encontrar apenas o eco das pedras mortas e da terra seca.

Quando o vento e a chuva fustigavam as janelas, ou quando as sombras dos móveis e das árvores assomavam assustadoras, ela surgia. Ela a tomava nos braços, cantarolava melodias desajeitadas no ouvido da irmã mais nova, corria os dedos em seus cabelos. E então o mundo voltava a ser pequeno e familiar, graciosamente plano e previsível.

os grãos de terra entram por sob as unhas a encosta torna-se mais íngreme e os pés continuam correndo correr é a única coisa que se pode fazer a única coisa que merece ser feita que precisa acontecer correr para onde não existem espelhos para onde o ar abafado não carrega canções

Água. Deixar-se cair na água.
A superfície especular quebra-se em mil ondulações e, com um último som brusco, o mundo desabrocha num silêncio absoluto.
Afundar.

Ela agora estava longe, muito longe, entre os sinos alegres, inalcançável, envolta em rendas, entre cantilenas serenas – além. O sorriso havia sido o fim.

Aqui embaixo tudo é escuro, os movimentos são lentos, nada começa e nada acaba.
Agora as sombras estão livres para enredar; o medo dança livre, lascivo. Dedos nos cabelos, abraços carinhosos e dolorosos cristalizados num vislumbre translúcido, fossilizados na inexistência futura.
Cante para mim com seus olhos cegos.

É preciso respirar.
Emerge com a coragem dos desesperados e o ar se faz sorver, agudo como uma lâmina.
As flores de tecido se esparramam pela água, leves.
As vozes do vilarejo ainda deslizam pelo vale,
miragem,
os besouros esverdeados voam cada vez mais rápido, em círculos,
zumbido,
aos poucos as vozes se perdem pelo caminho, se desmancham por entre o cricrilar que se eleva das plantas.
As libélulas dardejam, bailarinas, mergulham no que sobrou da tarde, puxam os fios de sombra e os fazem envolver.
A água acaricia a pele, beija as feridas nos tornozelos.
A escuridão, de repente, se desarma.
Água fria entre os cabelos, silenciosamente delicada, o acalanto da falta de luz.

por si só
ser

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3 Comments:

Blogger Giulia T. said...

eu imaginei um sol fraco, quase morrendo...

junho 15, 2008  
Blogger Utak said...

bonito! belo! gostei muito das figuras de linguagem, todas elas.
Sucinto, mas longo...

sei lá, gostei.

junho 22, 2008  
Anonymous Anônimo said...

Maravilhoso!

agosto 05, 2008  

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