Branco
hey jenny rose
desjejum na cama e alma na lama, certo?
sempre quisera dizer ele mesmo essa frase, e agora que finalmente o fazia era uma pena que ela não pudesse ouvi-lo, apesar de as palavras inegavelmente murcharem um pouco sem a inimitável entonação de billy jack, cavalgando pelo chaparral pouco depois do pôr-do-sol e logo antes dos créditos finais; o ar estava confinado entre as paredes do quarto, a camisa já colava no suor do corpo, mas o homem não quis abrir a janela, limitou-se a dissipar a escuridão acendendo o abajur – a luz então engatinhou pelo espaço, revelando aos poucos o que ele continha; era uma luz muito generosa, dessas que suavemente omitem todas as imperfeições – ou pelo menos a maioria delas; deste modo o homem podia ignorar o descascado do papel de parede pois, por alguma razão, olhar para aquilo era como ver um trem vagaroso desaparecendo numa curva lá longe; a mão direita brincava com as franjas da cúpula do abajur, enquanto a esquerda afrouxava a gravata; apesar de tudo, não havia outro lugar em que gostaria de estar naquele momento, sentado naquela poltrona, de frente para a cama em que ela dormia – os cabelos por todo o travesseiro, os braços e pernas derramados, a pele tornada pluma pela bondade da luz; o homem acariciou o tecido roto da poltrona como se acariciasse aquilo que via; o sono tranqüilo ditava o ritmo pesado da respiração; ela respirava como se o mundo se abrissse todo – sincero e sorridente – para aqueles que não têm medo e, acima de tudo, não têm o que temer; aos poucos, na ponta dos pés, o som da respiração – quase, quase inaudível – alcançou o homem em sua poltrona e tateou-o com delicadeza, percorreu seus dedos inquietos, seus braços, até chegar na garganta e a partir daí deslizar até o ventre, onde então aninhou-se e passou a difundir seu ritmo cadenciado por todo o corpo; era como se o homem estivesse preso à mulher por uma linha invisível que, a cada expiração, ficava um pouco menor; quando a linha ficou curta demais, teve de se levantar; escorregaram, relutantes, os dedos pelo tecido gasto; cada passo seguia no entretempo da respiração; ali, enfim tão perto, tirou o paletó e colocou-o ao pé da cama; num gesto um pouco nervoso, afrouxou ainda mais a gravata; aproximou-se; levou o nariz para bem perto dos cabelos da mulher, percorreu seu pescoço, seus ombros; muito de leve, tocou seu braço; ela se mexeu, inquieta, ainda dormindo; virou um pouco a cabeça para o outro lado; o ritmo foi interrompido, a respiração mudou, a linha partiu-se; a luz tornou-se transparente demais, clara demais; as flores desenhadas nas paredes emergiram irremediavelmente esfaceladas; uma gota de suor escorreu pelo meio das costas; era – ou parecia ser - um domingo, e a frase de billy jack era tão, tão tola; tudo o que estava fora daquele quarto era uma memória longínqua, um sussurro no escuro; o homem afundou os dedos no outro travesseiro, apertou até a dor subir pelo punho; quem dera derramar também seus braços e pernas junto a ela, quem dera, quem dera; trouxe o travesseiro para perto de si, o rosto da mulher estava escuro contra a luz do abajur, a boca ligeiramente entreaberta, suspendeu o travesseiro, sim, deveria ser mesmo um domingo, apertou o travesseiro com toda a força, sim, de uma vez por todas a linha havia sido rompida, a mulher debateu-se, as unhas arranharam em meio ao desespero, as pernas chutaram em espasmos, ele apertou com mais força, os dedos dela cravaram-se nos braços dele, o novo ritmo era ditado pelos gritos abafados – então os dedos soltaram-se e os braços penderam com uma graciosidade que nunca tiveram em vida.
Limpou o suor da testa. Colocou o paletó. Arrumou a gravata. Tirou o travesseiro da mulher e beijou-a com amor redescoberto. Apagou o abajur. Pensou um pouco e acendeu-o de novo. Abriu a porta e saiu.
desjejum na cama e alma na lama, certo?
sempre quisera dizer ele mesmo essa frase, e agora que finalmente o fazia era uma pena que ela não pudesse ouvi-lo, apesar de as palavras inegavelmente murcharem um pouco sem a inimitável entonação de billy jack, cavalgando pelo chaparral pouco depois do pôr-do-sol e logo antes dos créditos finais; o ar estava confinado entre as paredes do quarto, a camisa já colava no suor do corpo, mas o homem não quis abrir a janela, limitou-se a dissipar a escuridão acendendo o abajur – a luz então engatinhou pelo espaço, revelando aos poucos o que ele continha; era uma luz muito generosa, dessas que suavemente omitem todas as imperfeições – ou pelo menos a maioria delas; deste modo o homem podia ignorar o descascado do papel de parede pois, por alguma razão, olhar para aquilo era como ver um trem vagaroso desaparecendo numa curva lá longe; a mão direita brincava com as franjas da cúpula do abajur, enquanto a esquerda afrouxava a gravata; apesar de tudo, não havia outro lugar em que gostaria de estar naquele momento, sentado naquela poltrona, de frente para a cama em que ela dormia – os cabelos por todo o travesseiro, os braços e pernas derramados, a pele tornada pluma pela bondade da luz; o homem acariciou o tecido roto da poltrona como se acariciasse aquilo que via; o sono tranqüilo ditava o ritmo pesado da respiração; ela respirava como se o mundo se abrissse todo – sincero e sorridente – para aqueles que não têm medo e, acima de tudo, não têm o que temer; aos poucos, na ponta dos pés, o som da respiração – quase, quase inaudível – alcançou o homem em sua poltrona e tateou-o com delicadeza, percorreu seus dedos inquietos, seus braços, até chegar na garganta e a partir daí deslizar até o ventre, onde então aninhou-se e passou a difundir seu ritmo cadenciado por todo o corpo; era como se o homem estivesse preso à mulher por uma linha invisível que, a cada expiração, ficava um pouco menor; quando a linha ficou curta demais, teve de se levantar; escorregaram, relutantes, os dedos pelo tecido gasto; cada passo seguia no entretempo da respiração; ali, enfim tão perto, tirou o paletó e colocou-o ao pé da cama; num gesto um pouco nervoso, afrouxou ainda mais a gravata; aproximou-se; levou o nariz para bem perto dos cabelos da mulher, percorreu seu pescoço, seus ombros; muito de leve, tocou seu braço; ela se mexeu, inquieta, ainda dormindo; virou um pouco a cabeça para o outro lado; o ritmo foi interrompido, a respiração mudou, a linha partiu-se; a luz tornou-se transparente demais, clara demais; as flores desenhadas nas paredes emergiram irremediavelmente esfaceladas; uma gota de suor escorreu pelo meio das costas; era – ou parecia ser - um domingo, e a frase de billy jack era tão, tão tola; tudo o que estava fora daquele quarto era uma memória longínqua, um sussurro no escuro; o homem afundou os dedos no outro travesseiro, apertou até a dor subir pelo punho; quem dera derramar também seus braços e pernas junto a ela, quem dera, quem dera; trouxe o travesseiro para perto de si, o rosto da mulher estava escuro contra a luz do abajur, a boca ligeiramente entreaberta, suspendeu o travesseiro, sim, deveria ser mesmo um domingo, apertou o travesseiro com toda a força, sim, de uma vez por todas a linha havia sido rompida, a mulher debateu-se, as unhas arranharam em meio ao desespero, as pernas chutaram em espasmos, ele apertou com mais força, os dedos dela cravaram-se nos braços dele, o novo ritmo era ditado pelos gritos abafados – então os dedos soltaram-se e os braços penderam com uma graciosidade que nunca tiveram em vida.
Limpou o suor da testa. Colocou o paletó. Arrumou a gravata. Tirou o travesseiro da mulher e beijou-a com amor redescoberto. Apagou o abajur. Pensou um pouco e acendeu-o de novo. Abriu a porta e saiu.
Marcadores: Esboços cromáticos
7 Comments:
PERFEITO
que emocionante!
genial.
inspirado em Kieslowski?
obrigada pelos elogios! e eu realmente preciso ver um filme do Kieślowski... é a segunda vez que o Philipson de alguma forma os compara com os esboços e eu não sei o motivo (oh ignorância cinematográfica!)
ué, você já viu: Não amarás, filme da série dOs Mandamentos.
Mas os que me refiro é da trilogia das cores, feitos em comemoração e retrospectiva dos 200 anos de Revolução Francesa. Esse pequeno texto lembra-se muito a uma cena do Branco, e como levam o mesmo nome achei que tivessem tudo a ver.
nossa, então esse filme é dele... é uma pena que eu não lembre nada desse filme (provavelmente devido ao stress pós-traumático violentíssimo causado por um ano de aulas com a Gilda).
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