17 outubro, 2008

Branco

hey jenny rose
desjejum na cama e alma na lama, certo?

sempre quisera dizer ele mesmo essa frase, e agora que finalmente o fazia era uma pena que ela não pudesse ouvi-lo, apesar de as palavras inegavelmente murcharem um pouco sem a inimitável entonação de billy jack, cavalgando pelo chaparral pouco depois do pôr-do-sol e logo antes dos créditos finais; o ar estava confinado entre as paredes do quarto, a camisa já colava no suor do corpo, mas o homem não quis abrir a janela, limitou-se a dissipar a escuridão acendendo o abajur – a luz então engatinhou pelo espaço, revelando aos poucos o que ele continha; era uma luz muito generosa, dessas que suavemente omitem todas as imperfeições – ou pelo menos a maioria delas; deste modo o homem podia ignorar o descascado do papel de parede pois, por alguma razão, olhar para aquilo era como ver um trem vagaroso desaparecendo numa curva lá longe; a mão direita brincava com as franjas da cúpula do abajur, enquanto a esquerda afrouxava a gravata; apesar de tudo, não havia outro lugar em que gostaria de estar naquele momento, sentado naquela poltrona, de frente para a cama em que ela dormia – os cabelos por todo o travesseiro, os braços e pernas derramados, a pele tornada pluma pela bondade da luz; o homem acariciou o tecido roto da poltrona como se acariciasse aquilo que via; o sono tranqüilo ditava o ritmo pesado da respiração; ela respirava como se o mundo se abrissse todo – sincero e sorridente – para aqueles que não têm medo e, acima de tudo, não têm o que temer; aos poucos, na ponta dos pés, o som da respiração – quase, quase inaudível – alcançou o homem em sua poltrona e tateou-o com delicadeza, percorreu seus dedos inquietos, seus braços, até chegar na garganta e a partir daí deslizar até o ventre, onde então aninhou-se e passou a difundir seu ritmo cadenciado por todo o corpo; era como se o homem estivesse preso à mulher por uma linha invisível que, a cada expiração, ficava um pouco menor; quando a linha ficou curta demais, teve de se levantar; escorregaram, relutantes, os dedos pelo tecido gasto; cada passo seguia no entretempo da respiração; ali, enfim tão perto, tirou o paletó e colocou-o ao pé da cama; num gesto um pouco nervoso, afrouxou ainda mais a gravata; aproximou-se; levou o nariz para bem perto dos cabelos da mulher, percorreu seu pescoço, seus ombros; muito de leve, tocou seu braço; ela se mexeu, inquieta, ainda dormindo; virou um pouco a cabeça para o outro lado; o ritmo foi interrompido, a respiração mudou, a linha partiu-se; a luz tornou-se transparente demais, clara demais; as flores desenhadas nas paredes emergiram irremediavelmente esfaceladas; uma gota de suor escorreu pelo meio das costas; era – ou parecia ser - um domingo, e a frase de billy jack era tão, tão tola; tudo o que estava fora daquele quarto era uma memória longínqua, um sussurro no escuro; o homem afundou os dedos no outro travesseiro, apertou até a dor subir pelo punho; quem dera derramar também seus braços e pernas junto a ela, quem dera, quem dera; trouxe o travesseiro para perto de si, o rosto da mulher estava escuro contra a luz do abajur, a boca ligeiramente entreaberta, suspendeu o travesseiro, sim, deveria ser mesmo um domingo, apertou o travesseiro com toda a força, sim, de uma vez por todas a linha havia sido rompida, a mulher debateu-se, as unhas arranharam em meio ao desespero, as pernas chutaram em espasmos, ele apertou com mais força, os dedos dela cravaram-se nos braços dele, o novo ritmo era ditado pelos gritos abafados – então os dedos soltaram-se e os braços penderam com uma graciosidade que nunca tiveram em vida.

Limpou o suor da testa. Colocou o paletó. Arrumou a gravata. Tirou o travesseiro da mulher e beijou-a com amor redescoberto. Apagou o abajur. Pensou um pouco e acendeu-o de novo. Abriu a porta e saiu.

Marcadores:

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

PERFEITO

outubro 17, 2008  
Blogger Giulia T. said...

que emocionante!

outubro 18, 2008  
Blogger Camila T. said...

genial.

outubro 18, 2008  
Blogger Inominado ou Metanome ou um heterônimo (de-mim-mesmo) said...

inspirado em Kieslowski?

outubro 19, 2008  
Blogger muriel said...

obrigada pelos elogios! e eu realmente preciso ver um filme do Kieślowski... é a segunda vez que o Philipson de alguma forma os compara com os esboços e eu não sei o motivo (oh ignorância cinematográfica!)

outubro 19, 2008  
Blogger Inominado ou Metanome ou um heterônimo (de-mim-mesmo) said...

ué, você já viu: Não amarás, filme da série dOs Mandamentos.
Mas os que me refiro é da trilogia das cores, feitos em comemoração e retrospectiva dos 200 anos de Revolução Francesa. Esse pequeno texto lembra-se muito a uma cena do Branco, e como levam o mesmo nome achei que tivessem tudo a ver.

outubro 19, 2008  
Blogger muriel said...

nossa, então esse filme é dele... é uma pena que eu não lembre nada desse filme (provavelmente devido ao stress pós-traumático violentíssimo causado por um ano de aulas com a Gilda).

outubro 19, 2008  

Postar um comentário

<< Home