15 fevereiro, 2010

Cinza

O som da música e das vozes aos poucos se afogava na chuva, até desaparecer por completo. Esgueirei-me pelo muro do jardim (o horror dos jasmins e das rosas inglesas), chutei um anão de cerâmica e enfim saí na rua deserta.


Segui pelo caminho difuso das luzes dos postes enfileirados – a canção silenciosa da noite. É preciso fazer-se cego e confiar na geometria da teia de aranha.


Deslizei pela espiral chapinhando os pés no ritmo do charleston, até que finalmente cheguei ao ponto em que não havia mais luzes sobre meus pés, apenas adiante de mim – o último vagalume das horas altas.


Levantei a lona e pude sentir o cheiro palpável de alguém não acostumado a receber visitas. Mas ele não se assustou, nem mesmo fingiu estar surpreso.


Olá - disse ele - sem levantar a cabeça do papel. Escrevia sem parar. Estava rodeado de pilhas de papéis sujos e completamente escrevinhados com letra miúda, os escritos intercalados com diagramas complexos de invenções revolucionárias e invisíveis.


Tirei meu paletó encharcado e lhe entreguei a garrafa. Isso o fez largar o lápis e seus dedos ossudos se fecharam em volta do gargalo. A minha oferenda fora aceita.


Juntou os papéis que estavam em seu colo e os colocou de lado. Inclinou-se um pouco e pôs-se a espiar a chuva por uma fresta na lona. Suas pálpebras estavam pesadas e cheguei a pensar que fosse dormir. Contudo, num movimento rápido, fechou a abertura e colocou o velho lampião entre nós. A luz amarelecida cavava sombras em seu rosto fazendo as rugas parecerem mais fundas.


Conta-se - começou ele, a voz baixa como para não acordar alguém - que em dias hoje cabalmente esquecidos pelas gentes que palmilham sob esta chuva e estas árvores, numa cidade assim não longe daqui, mas também não muito perto, tinha esse homem, entende?


Ficamos em silêncio até que fiz um movimento de cabeça para que continuasse.


Esse homem gostava de desafiar o equilíbrio do éter, de se pendurar por aí, encarapitado em telhados e lugares altos do tipo. De se despregar do chão e ficar mais perto das nuvens, mas não tão perto a ponto de derreter a cera, era mais aquela vontade heliocêntrica e absolutamente holística de se aproximar de Deus. Porque na verdade o alfabeto começa com D e termina no S. Então vivia assim, alfabeticamente encarapitado que nem um corvo porque sabia que se ficasse na terra um dia ia ser peremptoriamente inescapavelmente digerido, sabe como são essas coisas. Gostava de seguir as linhas, as linhas entende, e mesmo nas ruas só andava equilibrado no meio fio. Era isso, era isso que era, um equilibrista consumado no dia a dia dos dias que giram e vibram no infinito da palma da mão na freqüência das super-cordas. E tinha esses dois prédios enormes, absurdos e sarapintados de janelas de vidro que refletiam a cidade toda. Sabe – e chegou mais perto de mim, um sorriso nos lábios – dizem que isso deforma a imagem, mas a verdade é que mostra a cidade como ela realmente é. E esse homem ficava tardes e dias e noites com os olhos infinitesimalmente colados nesses prédios porque ele sabia que tinha que subir lá em cima e beijar a bunda lucescente e doce do céu de diamantes. E não me pergunte como, mas ele conseguiu esticar uma corda assim meio minhoca entre um prédio e outro, e um belo dia foi-se para lá inacreditavelmente estúpido e resoluto para andar naquela corda e tornar-se o último nefelibata. A cidade toda parou para ver aquele homenzinho (não que ele fosse um anão ou algo do gênero, mas você pode imaginar que lá de cima ele parecia muito pequeno) pondo um pé atrás do outro (ele só tinha dois, veja bem), e foi-se naquela corda bamba que de certo modo se parecia com um bambu. Lá embaixo ninguém despregava os olhos dele, pois seu pioneirismo era motivo de “ohs” e “ahs” e apostas de que eventualmente cairia e quebraria o pescoço. Mas ele ia bem, de equilíbrio impecável, resultado de anos dançando nas cumeeiras. Esse era o seu tempo e seu momento, perfeitamente a meio caminho entre o chão e os planetas girantes em suas órbitas indiscutivelmente lunares, apesar da fixação solar de Copérnico. E aquilo era o melhor que tinha vivido, porque aquele lugar de ninguém podia tornar-se seu. Algo como usucapião, entende? – ele agarrava a garrafa contra o peito, os dedos brancos – Mas quando chegou à metade do caminho parou. E ninguém entendeu, ele estava indo tão bem! Mas empacou, e não havia grito ou vento que o tirasse de lá. Ele nunca olhava para baixo, ou mesmo pros lados, porque seus olhos estavam trancados em frente, para alguma coisa solipsisticamente única. Aos poucos as pessoas perderam o interesse e voltaram a fazer o que quer que estivessem fazendo quando pararam para ver o equilibrista, e ele continuava ali. Nos dias seguintes apenas alguns ainda se lembravam de dar umas espiadelas safadas para o alto para ter certeza de que aquilo não foi uma ilusão dessas bem gordas. Acho que ele finalmente tinha encontrado o que quer que seja que estivesse procurando, isto é, partindo do princípio ínfimo (porém radiofonicamente plausível) de que estivesse mesmo atrás de alguma coisa.


Esse homem - comecei, a voz trêmula – ficou lá... Para sempre? – pois suas histórias sempre tinham possibilidades infinitas.


O quê? Claro que não... Um dia olharam para cima e não tinha nem rastro nem cheiro dele. Só a corda estendida de um lado a outro, abandonada. Nunca mais foi visto.


Ainda ficamos alguns instantes entreolhando-nos na luz mortiça do lampião, até que ele finalmente abaixou a garrafa e retomou sua escrita. Era o sinal de que não havia mais nada a contar ou a ouvir. Mas não consegui parar.


O que ele viu? O que encontrou lá?


Como vou saber? – não tirou os olhos do papel.


Isso não faz sentido! Como assim ele simplesmente desapareceu? Algo deve...


Olhe aqui – os papéis escorregaram – esse homem sumiu, escafedeu-se, e hoje devem achar que ele nunca existiu. Porque ali em cima ele viu, e depois disso nada poderia remotamente voltar a girar nos círculos concêntricos e brancos em que as formigas e você e todos os outros caminham todos os dias! E depois que se vê não se pode voltar, não se pode...


Onde está ele agora?


Só se ouvia o rumorejo da chuva lá fora. Seus olhos estavam muito brilhantes.


Como posso saber?

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2 Comments:

Blogger Charles Bosworth said...

Yey! Alguém usou a palavra nefelibata. Gostei.

fevereiro 23, 2010  
Anonymous Anônimo said...

Brilhante :)

abril 28, 2010  

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