Azul
O homem ofegava baixinho enquanto se movia furtivo por entre as árvores. Tudo estava muito quieto à sua volta e o menor barulho, sabia ele, tiraria a floresta escura de seu sono leve.
Andar por ali à noite era como dançar; uma dança lenta e suave, com movimentos calculados.
E um, e dois, e três, e um...
Estava frio, e o homem via a sua respiração se condensar em uma nuvenzinha translúcida, só para desaparecer no instante seguinte.
Ele sabia que devia estar perto; os rastros no chão úmido não mentiam e em breve, muito em breve, ele o encontraria.
Se o homem não estivesse tão absorvido em sua busca talvez tivesse notado que aquela de fato não era uma noite como as outras e que a floresta, como se sentisse isso, também não era a mesma dos outros dias do ano.
Mais à frente, um graveto se quebrou e, assim, ouvindo antes de ver, ele soube que o havia encontrado.
Ali, a poucos metros, o Cervo Branco comia tranqüilamente um pouco da grama fresca. As arvores nessa parte da floresta não eram tão próximas, e o luar penetrava por entre as folhas fazendo tudo parecer feito de prata, recobrindo o instante com uma surrealidade onírica.
O homem não podia deixar de se maravilhar com o que via. Finalmente, finalmente... Era mesmo verdade. E era dele. O Cervo Branco tinha saído das lendas e agora estava ali, à sua mercê. Agora, cada desejo de seu coração, por mais desesperado, absurdo ou impossível que fosse, se realizaria.
Com todo o cuidado, seguiu para o próximo passo daquela dança solitária e lentamente levantou o arco. Com a outra mão, buscou uma flecha na aljava às suas costas. Com a delicadeza de quem coloca a linha no buraco da agulha, posicionou a flecha no arco de madeira. A seta parecia ainda mais aguda e afiada sob a luz da lua, como se pedindo para se cravar na pele macia do Cervo. Aos poucos, muito devagar, foi puxando a corda do arco. E um, e dois, sem pressa, e um... Naquele momento, naquele último segundo antes de os dedos se soltarem e a flecha sair voando com um brilho mortal, de algum lugar da floresta ressoou alto um pio de coruja, como um agouro sinistro.
De repente, as árvores prateadas começaram a uivar com um vento forte e frio. A flecha escapou dos dedos e com um silvo atravessou o teto de folhas da floresta, furando o ar furiosamente como se quisesse tocar a lua; foi diminuindo de velocidade até que parou e se suspendeu no vazio pelo que pareceu uma pequena eternidade, apenas uma pausa naquela dança peculiar, para no segundo seguinte despencar mais rápido do que tinha vindo, indo cair muito longe do arco que a lançara.
Ali, no ponto de partida, estava o homem jogado no chão, ainda confuso. Tudo acontecera tão rápido que ele havia perdido o equilíbrio. Massageava a própria cabeça no lugar dolorido onde esta havia batido com força em alguma raiz proeminente.
Sentiu mais uma pontada dentro do cérebro, mas não era dor; era a quase esquecida noção de que ele estava numa caçada, e que se continuasse ali no chão, o Cervo Branco escaparia por entre as brumas da floresta para nunca mais ser encontrado.
O homem se levantou o mais rápido que pôde, quase escorregou e por pouco não caiu de novo. Estendeu o braço com o arco, a outra mão a meio caminho da aljava quando percebeu que algo estava terrivelmente errado.
O Cervo Branco. Onde estava ele? O homem sentiu como se uma mão de gelo agarrasse seu peito, e o pensamento desesperado de que o Cervo estava perdido irrompeu com tanta força em sua mente que por um momento o impediu de ver que isso não era tudo.
A apenas poucos metros, no lugar do Cervo se encontrava um mulher. O homem ainda piscou várias vezes, como se esperasse que ela fosse alguma conseqüência da pancada na cabeça. Mas como ela se recusava a simplesmente desaparecer diante dos seus olhos, ele foi obrigado a aceitar que ela era real, pelo menos tão real quanto as coisa podiam ser naquela noite.
A mulher era muito branca, e sua palidez etérea parecia emitir um tênue brilho próprio. Tinha os cabelos pretos, tão escuros quanto a pele era clara, e cobriam suas costas como uma capa de veludo e, ainda assim, pareciam tão tangíveis como se feitos da penumbra da noite. Usava um vestido que parecia ter aquela mesma leveza e luz própria da mulher que o vestia.
Era tudo muito estranho.
Mas a misteriosa mulher parecia não notar – percorria os arredores com seus grandes olhos escuros, curiosos. Deu um risinho, como se muito satisfeita de estar ali. Andou alguns poucos passos, parecendo feliz de sentir a grama macia sob os pés e ver acima de si as estrelas, por entre as copas das árvores.
Impossível dizer quanto tempo ela ficou por ali, perdida no próprio encantamento, caminhando por entre as árvores com tanta leveza que o caçador chegou a se perguntar se ela realmente tocava o chão.
Ah sim, o homem continuava no mesmo lugar, um braço empunhando o arco, o outro ainda a caminho da aljava, como que congelado. Simplesmente não conseguia acreditar no que via. Mas se ele achava que as coisas não podiam ficar mais esquisitas, ele estava errado.
A mulher tinha a cabeça levantada, os olhos arregalados e sonhadores com se o que estivessem vendo fosse absolutamente fantástico e espantoso; nos lábios, um sorriso aberto. Todavia, no instante seguinte o sorriso se apagou e os olhos piscaram como se procurando a antiga fonte de deleite, até que encontraram outro par de olhos – o do caçador.
O tempo pareceu parar, e o mundo definitivamente havia deixado de girar. Ninguém mais dançava. Só existiam aqueles dois grandes olhos pretos, nada mais.
Por uma fração de segundo o homem teve medo, mas uma voz fraca e distante dentro de sua cabeça descartou a sensação como sendo boba, e então ele percebeu que o que mais queria era se congelar naquele momento, para sempre.
A mulher inclinou a cabeça levemente para o lado, o olhar ainda pousado no caçador, e se dirigiu a ele, como se flutuasse.
O homem continuava plantado no chão, os pés pesados demais para sair do lugar. Aos poucos foi baixando o arco, os olhos fixos na estranha aparição.
Ela chegou bem perto dele, seus narizes a dois palmos de distância. A lua ainda banhava tudo com uma estranha luz prateada e, no instante em que a atmosfera estagnada foi rompida por um leve farfalhar de folhas, a mulher levou seus dedos longos e brancos à face do caçador, que estremeceu com o repentino toque frio.
Apesar do arrepio que lhe percorreu a espinha, ele não saiu do lugar. Os dedos começaram então a percorrer suas feições, o contorno da boca, a linha das sobrancelhas, o relevo do nariz. Era um toque glacial, que deixava um formigamento na pele – mas não era desagradável. E os olhos, sempre pretos e grandes.
De repente, a mulher retirou a mão do rosto do caçador e a levou aos próprios lábios, como se pedindo silêncio. Nesse momento o caçador percebeu que nunca contaria a ninguém sobre esta noite na floresta, mesmo porque não acreditariam nele. Na verdade, ele nunca diria nada sobre o episódio pois sabia que o encanto inexplicável do acontecido se dissiparia como névoa assim que deixasse sua boca.
E então o silêncio pesado se rompeu abruptamente como vidro estilhaçado, quando um vento furioso passou rugindo por entre as árvores.
Ao longe ressoou um pio de coruja, longo e triste.
O homem abriu de novo os olhos. À sua frente apenas os olhos grandes e pretos do Cervo Branco, que piscaram assustados antes de desaparecerem rápido por entre as árvores da floresta.
Andar por ali à noite era como dançar; uma dança lenta e suave, com movimentos calculados.
E um, e dois, e três, e um...
Estava frio, e o homem via a sua respiração se condensar em uma nuvenzinha translúcida, só para desaparecer no instante seguinte.
Ele sabia que devia estar perto; os rastros no chão úmido não mentiam e em breve, muito em breve, ele o encontraria.
Se o homem não estivesse tão absorvido em sua busca talvez tivesse notado que aquela de fato não era uma noite como as outras e que a floresta, como se sentisse isso, também não era a mesma dos outros dias do ano.
Mais à frente, um graveto se quebrou e, assim, ouvindo antes de ver, ele soube que o havia encontrado.
Ali, a poucos metros, o Cervo Branco comia tranqüilamente um pouco da grama fresca. As arvores nessa parte da floresta não eram tão próximas, e o luar penetrava por entre as folhas fazendo tudo parecer feito de prata, recobrindo o instante com uma surrealidade onírica.
O homem não podia deixar de se maravilhar com o que via. Finalmente, finalmente... Era mesmo verdade. E era dele. O Cervo Branco tinha saído das lendas e agora estava ali, à sua mercê. Agora, cada desejo de seu coração, por mais desesperado, absurdo ou impossível que fosse, se realizaria.
Com todo o cuidado, seguiu para o próximo passo daquela dança solitária e lentamente levantou o arco. Com a outra mão, buscou uma flecha na aljava às suas costas. Com a delicadeza de quem coloca a linha no buraco da agulha, posicionou a flecha no arco de madeira. A seta parecia ainda mais aguda e afiada sob a luz da lua, como se pedindo para se cravar na pele macia do Cervo. Aos poucos, muito devagar, foi puxando a corda do arco. E um, e dois, sem pressa, e um... Naquele momento, naquele último segundo antes de os dedos se soltarem e a flecha sair voando com um brilho mortal, de algum lugar da floresta ressoou alto um pio de coruja, como um agouro sinistro.
De repente, as árvores prateadas começaram a uivar com um vento forte e frio. A flecha escapou dos dedos e com um silvo atravessou o teto de folhas da floresta, furando o ar furiosamente como se quisesse tocar a lua; foi diminuindo de velocidade até que parou e se suspendeu no vazio pelo que pareceu uma pequena eternidade, apenas uma pausa naquela dança peculiar, para no segundo seguinte despencar mais rápido do que tinha vindo, indo cair muito longe do arco que a lançara.
Ali, no ponto de partida, estava o homem jogado no chão, ainda confuso. Tudo acontecera tão rápido que ele havia perdido o equilíbrio. Massageava a própria cabeça no lugar dolorido onde esta havia batido com força em alguma raiz proeminente.
Sentiu mais uma pontada dentro do cérebro, mas não era dor; era a quase esquecida noção de que ele estava numa caçada, e que se continuasse ali no chão, o Cervo Branco escaparia por entre as brumas da floresta para nunca mais ser encontrado.
O homem se levantou o mais rápido que pôde, quase escorregou e por pouco não caiu de novo. Estendeu o braço com o arco, a outra mão a meio caminho da aljava quando percebeu que algo estava terrivelmente errado.
O Cervo Branco. Onde estava ele? O homem sentiu como se uma mão de gelo agarrasse seu peito, e o pensamento desesperado de que o Cervo estava perdido irrompeu com tanta força em sua mente que por um momento o impediu de ver que isso não era tudo.
A apenas poucos metros, no lugar do Cervo se encontrava um mulher. O homem ainda piscou várias vezes, como se esperasse que ela fosse alguma conseqüência da pancada na cabeça. Mas como ela se recusava a simplesmente desaparecer diante dos seus olhos, ele foi obrigado a aceitar que ela era real, pelo menos tão real quanto as coisa podiam ser naquela noite.
A mulher era muito branca, e sua palidez etérea parecia emitir um tênue brilho próprio. Tinha os cabelos pretos, tão escuros quanto a pele era clara, e cobriam suas costas como uma capa de veludo e, ainda assim, pareciam tão tangíveis como se feitos da penumbra da noite. Usava um vestido que parecia ter aquela mesma leveza e luz própria da mulher que o vestia.
Era tudo muito estranho.
Mas a misteriosa mulher parecia não notar – percorria os arredores com seus grandes olhos escuros, curiosos. Deu um risinho, como se muito satisfeita de estar ali. Andou alguns poucos passos, parecendo feliz de sentir a grama macia sob os pés e ver acima de si as estrelas, por entre as copas das árvores.
Impossível dizer quanto tempo ela ficou por ali, perdida no próprio encantamento, caminhando por entre as árvores com tanta leveza que o caçador chegou a se perguntar se ela realmente tocava o chão.
Ah sim, o homem continuava no mesmo lugar, um braço empunhando o arco, o outro ainda a caminho da aljava, como que congelado. Simplesmente não conseguia acreditar no que via. Mas se ele achava que as coisas não podiam ficar mais esquisitas, ele estava errado.
A mulher tinha a cabeça levantada, os olhos arregalados e sonhadores com se o que estivessem vendo fosse absolutamente fantástico e espantoso; nos lábios, um sorriso aberto. Todavia, no instante seguinte o sorriso se apagou e os olhos piscaram como se procurando a antiga fonte de deleite, até que encontraram outro par de olhos – o do caçador.
O tempo pareceu parar, e o mundo definitivamente havia deixado de girar. Ninguém mais dançava. Só existiam aqueles dois grandes olhos pretos, nada mais.
Por uma fração de segundo o homem teve medo, mas uma voz fraca e distante dentro de sua cabeça descartou a sensação como sendo boba, e então ele percebeu que o que mais queria era se congelar naquele momento, para sempre.
A mulher inclinou a cabeça levemente para o lado, o olhar ainda pousado no caçador, e se dirigiu a ele, como se flutuasse.
O homem continuava plantado no chão, os pés pesados demais para sair do lugar. Aos poucos foi baixando o arco, os olhos fixos na estranha aparição.
Ela chegou bem perto dele, seus narizes a dois palmos de distância. A lua ainda banhava tudo com uma estranha luz prateada e, no instante em que a atmosfera estagnada foi rompida por um leve farfalhar de folhas, a mulher levou seus dedos longos e brancos à face do caçador, que estremeceu com o repentino toque frio.
Apesar do arrepio que lhe percorreu a espinha, ele não saiu do lugar. Os dedos começaram então a percorrer suas feições, o contorno da boca, a linha das sobrancelhas, o relevo do nariz. Era um toque glacial, que deixava um formigamento na pele – mas não era desagradável. E os olhos, sempre pretos e grandes.
De repente, a mulher retirou a mão do rosto do caçador e a levou aos próprios lábios, como se pedindo silêncio. Nesse momento o caçador percebeu que nunca contaria a ninguém sobre esta noite na floresta, mesmo porque não acreditariam nele. Na verdade, ele nunca diria nada sobre o episódio pois sabia que o encanto inexplicável do acontecido se dissiparia como névoa assim que deixasse sua boca.
E então o silêncio pesado se rompeu abruptamente como vidro estilhaçado, quando um vento furioso passou rugindo por entre as árvores.
Ao longe ressoou um pio de coruja, longo e triste.
O homem abriu de novo os olhos. À sua frente apenas os olhos grandes e pretos do Cervo Branco, que piscaram assustados antes de desaparecerem rápido por entre as árvores da floresta.
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