23 maio, 2008

O fruto, seu arquiteto e o elefante - Parte II

Estava sozinho no meio de um grande gramado. No horizonte, seus olhos negros avistavam a floresta que circundava o ambiente bucólico, temendo o selvagem que presenciava e desejando explorar o inabitável.
Tinha duas escolhas, permanecer no prado, sob o sol, deitado, sonhando com aquela que já esteve em seus braços ou vislumbrar a mata, onde, pela lenda de seu vilarejo, era a morada das cobras.
Era a estação dos céus amarelos e das flores agitadas pelos os ventos oriundos das montanhas; o arquiteto estava explorando entre ramos, que indiscriminavelmente cresciam até alcançarem as nuvens. Os espaços entre os galhos produziam uma textura de desenhos (que lembram as rendas das cortinas de nossas avós), juntamente com as pequenas folhas que reproduziam todas as gamas de tons esverdeados.
Surpreendera, houve uma suspensão das correntes de ar, causando espantoso silêncio, que era terrivelmente mais assustador. Qí Jiã virou seu rosto lentamente, e de soslaio viu o que não podia: o casamento de Ba She.

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16 maio, 2008

Prelúdio número 15 em Ré Bemol Maior

Era um vale. Entre um conjunto de redondas colinas verdes e outro de montes azulados. Verde da cor da grama e azul-montanha. Talvez fosse uma depressão; os que ali viviam não saberiam a diferença.
O Sol brilhava, uma luz de inverno nórdico. Branca, fria, do tipo que torna a visão absolutamente precisa.
E ventava. Não era uma brisa, era um vento vindo não sei de onde que, toda vez que chegava, batia no lençol estendido no varal e retrocedia. O lençol era levado, por este fato, a flamular. Chicoteava a si mesmo no ritmo regular dos ares inquietos.
A princípio não se ouvia nada. Mas o ouvido de um artista, já avisado, logo percebia por sob o alarido das flores esvoaçantes e dos chocalhos fluidos, aquele ritmo emanado pelo mundo.
O ouvido treinado saberia que aquilo não era a ida e vinda do lençol que torturava a si mesmo (apesar deste fato exemplificar perfeitamente os efeitos da batida natural), nem o toque de um galho em seu vizinho, aproximados, também pelos humores atmosféricos.
O ouvido da moça que passava não era, porém, treinado. Ela passou, indiferente ao tempo regular decorrido entre a primeira metade de seu passo e a segunda, consonante com todo o resto.
Seus passos leves, seus sapatos leves mal podiam ser vistos por sob seu vestido. Ela era uma figura monocromática, algo entre o branco e o amarelo; até os cabelos que esvoaçavam, chicoteando como o lençol.
Ela também não se deu conta do fato de cada um de seus passos coincidir com um pingo de água saindo da montanha. Tudo era parte dos sons...normais. Vez ou outra, um pássaro dava uma pirueta no ar e emitia um trinado, não uma batida, que não deixava de ser mais que um adorno.
O mundo pulsava. Todas as criaturas, vivas ou não, pareciam perceber e se inserir. A moça não percebia. Mas o lençol, os pingos, os galhos influenciavam-na. A roupa que ela lavava era levada e trazida pela correnteza; logo, a moça começou a sovar o pano de acordo com o ritmo pulsante, sempre.
Mas ela não percebia.
E os humores atmosféricos pareciam se incomodar com o fato. Eles pareceram explodir em um esforço para chamar a atenção da figura humana, que, singelamente, prendia os cabelos com um lenço, assim que o vento começou a fustigá-los com mais violência. Ela se sentiu despertada, mas ainda sem saber de onde vinha a sensação.
Isso não era suficiente.
Nuvens começaram a se chocar com estrondos. Cinco deles se sucederam antes de surgirem os primeiros fragmentos de água à altura do rosto de uma pessoa. Então, a moça os sentiu.
Os estímulos da luz, do som, do toque frio das gotas, todos combinados, exerceram seu efeito sobre ela. Era latejante. Ela se sentiu impelida a algo. Ao sabor do som do mundo ela se sentia uma marionete sendo levada contra sua vontade... ela resistia, mas algo ribombava em sua cabeça. Latejante. Os fios puxando.
Ela, exasperada, se levantou e andou, correu, seus pés batendo com força na terra, sem mudar o ritmo. Ela chorou. E, então, ela percebeu que seus soluços se adequavam perfeitamente ao latejar, ao pulsar, ao ritmo.
Ela desabou. Diante do descobrimento de que aquilo do que fugia estava tão profundamente incrustado nela. O som retumbante, quase tétrico, continuou impiedosamente, até que, aos poucos, cessou.
Já era suficiente.
Só que ele não cessara. A moça olhou em volta e reparou que o Sol voltara a brilhar, o rio voltara a correr, os galhos a se chocar, os pingos a cair, o vento a açoitar. A moça já estava avisada. Seus ouvidos e todo o seu corpo foram treinados. Ela sabia que o mundo pulsava, escondido atrás da...normalidade.
Mas ela sabia. Todos sabiam. Ela sabia que todos sabiam. Era angustiante saber. Saber e não poder fugir. Estava em todo lugar.
Agora, só lhe restava continuar a viver sua vida.

10 maio, 2008

O fruto, seu arquiteto e o elefante - Parte I

Pudera, o arquiteto chinês lavou-se no riacho ao lado de sua casa. O elefante, que estava na parede, segurava uma toalha amarela.
A tinta, ainda fresca, escorria e borrava o grande mamífero de tromba comprida; porém, nenhuma ação ou movimento podiam distrair Qí Jiã – que focava suas pupilas negras em um grande fruto vermelho.
Isolado, o riacho agitava-se sutilmente no ritmo sincronizado que o construtor, em um esforço inexpressível, exercia alguma pressão pelo seu diafragma, comprimindo somente o ar necessário para o equilíbrio.
Surpreendentemente, a última folha da cerejeira, num momento único, desprendeu-se do ramo mais alto da árvore; planando entre os átomos invisíveis. Até atingir a superfície das águas, o tempo pareceu infinito e ao mesmo tempo imóvel na natureza.
No momento preciso, o arquiteto soube que seu banho havia terminado.
Despediu-se do fruto de que seus olhos não conseguiam, nem podiam se separar. Enfurecida de ciúmes e inveja, a cereja aproveitou toda a brisa que pairava ao entardecer para girar, o mais rapidamente que pode, em sua própria sustentação.

***
Quisera, Qí Jiã chegou à porta de bambu, esquecendo-se de esboçar palavras de bons sonhos ao elanfantinho – que nessa hora irritou-se, esticou-se até o pé de bananeira ao seu lado e fundiu-se, formando um borrão verde-amarelado no alicerce de madeira.
Ao se deitar, realizou seu sonho mais recente e legítimo; sentir o pequeno lençol de algodão lhe cobrir, mesmo que lentamente, seu corpo, no qual ainda restava um resquício de gotinhas d’água.

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