27 outubro, 2008

Engana-se quem pensa que temas latrinescos jamais chegam às grandes mídias, mas a verdade é que a escatologia não está mais condenada ao submundo jornalístico. Aqui segue uma reportagem publicada na Revista da Folha no dia 26/10. A reprodução deste texto se enquadra no já notório compromisso da Malta em prestar serviços de utilidade pública no que concerne a temas fedorentos (esta dedicação também é carinhosamente chamada de "spreading poo-know-how to the world").

Cocô e restos humanos
por Sérgio Dávila, de Washington

Você já ouviu falar do problema que a recente ascensão de camadas pobres da população ao mercado consumidor em países emergentes como Brasil, Rússia, Índia e China provocou e deve continuar provocando no suprimento mundial de energia, água, alimentação. Não falta alguma coisa nessa lista? Uma dica: se todo o mundo comer como os americanos comem, então...

Vamos chamar de boom das fezes? (ótemo termo!)

Pois é desse assunto tabu que trata um dos livros mais curiosos lançados no ano. É "The Big Necessity - The Unmentionable World of Human Waste and Why It Matters" (A Grande Necessidade - O Mundo Não Mencionável dos Dejetos Humanos e Por que Ele Importa, Metropolitan Books, 304 págs.), que acaba de chegar às livrarias aqui nos EUA. (Este livro integra a biblioteca básica da Latrina. A Malta tenta colocar em prática o projeto de distribuí-lo em banheiros alheios, mas devido à falta de verbas isso não pôde ser realizado ainda. Recomendamos que as pessoas tenham uma cópida do tomo em suas salas de trono para aprender coisas úteis enquanto atendem ao chamado da natureza. Outra boa idéia é deixar o livro no lavabo, para conscientizar as visitas)

Nele, a jornalista britânica Rose George fala de um assunto no qual, como diz o título, poucos ousam tocar (mais uma vez, a Latrina mostra seu espírito de vanguarda). O excremento está acabando com o mundo, e não é pelo motivo que você imagina. Há 2,6 bilhões de pessoas sem qualquer tipo de serviço de esgoto no mundo, quase metade do planeta que, quando precisa ir ao banheiro, faz ali no matinho ou na rua ou na calçada ou nas beiras dos rios.

O cocô humano é um dos mais tóxicos do reino animal. Uma, digamos, "amostra" tem bactérias, vermes, vírus e causa 50 infecções conhecidas. (oh dear) Se contamina a água a ser bebida, provoca, entre outras doenças, diarréia. Essa é a segunda causa de mortandade infantil no mundo, atrás só de problemas respiratórios. Por que todos falam de energia limpa, mas ninguém fala disso?

Rose George acha que a questão é, principalmente, de linguagem. "As pessoas não querem conversar sobre o tema (o que ela pensaria se soubesse que existe um blógue sobre o assunto?), não temos palavras para tratar do assunto que não sejam tabu (merda), médicas (bolo fecal) ou técnicas (excremento) e já exaurimos as metáforas" (prefiro pensar que isto é uma questão de imaginação), escreve. Para a autora, é como se os países desenvolvidos tivessem "dado a descarga" no problema, em parte por achar o tema vexatório. (tsc tsc)

Ela cita como exemplo o fato de que nenhuma celebridade quer se ligar à causa -com exceção do ator Matt Damon, que milita por sanitários portáteis para a África. Esse foi um dos fatos que o livro dela me revelou.

Alguns outros:

* Na Idade Média, era uma honra ser recebido por um rei enquanto ele estava na privada;

* A invenção da privada adicionou 20 anos ao tempo de vida médio dos humanos; por isso, o "British Medical Journal" considerou o saneamento o maior avanço médico dos últimos dois séculos; (Há, quem sabia disso? Viva a latrina!)

* O Japão era uma civilização do papel e mudou para a água recentemente; há privadas japonesas de milhares de dólares, com dezenas de jatos, controle da temperatura da água quente, desodorantes de ar, medidores de pressão sangüínea, música e até massagem das nádegas; (como já foi apontado aqui)

* Os muçulmanos, que se limpam com água, acham o uso do papel higiênico um dos hábitos mais incompreensíveis e sujos do Ocidente -o choque de civilizações de que fala Samuel Huntington começa na latrina. (mas ela também pode ser um motivo de união, afinal, quem é que, podendo fazer uso dela, não o faz?)

Essa é a penúltima coluna antes da perda de poder de fato por George W. Bush, que acontece no dia 4 de novembro, com a eleição do novo presidente; achei que o tema vinha a calhar.
Enfim, a Malta acredita que todos deveriam ter acesso a latrinas. Além de ser um objeto simpático, que pode proporcionar momentos de alegria e reflexão, é também indispensável à higiene e ao saneamento básico. Por isso continuaremos com a nossa missão de divulgar notícias de cunho latrinesco.
Agora todo mundo junto: Hip hip hurra!
Ou não.

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17 outubro, 2008

Branco

hey jenny rose
desjejum na cama e alma na lama, certo?

sempre quisera dizer ele mesmo essa frase, e agora que finalmente o fazia era uma pena que ela não pudesse ouvi-lo, apesar de as palavras inegavelmente murcharem um pouco sem a inimitável entonação de billy jack, cavalgando pelo chaparral pouco depois do pôr-do-sol e logo antes dos créditos finais; o ar estava confinado entre as paredes do quarto, a camisa já colava no suor do corpo, mas o homem não quis abrir a janela, limitou-se a dissipar a escuridão acendendo o abajur – a luz então engatinhou pelo espaço, revelando aos poucos o que ele continha; era uma luz muito generosa, dessas que suavemente omitem todas as imperfeições – ou pelo menos a maioria delas; deste modo o homem podia ignorar o descascado do papel de parede pois, por alguma razão, olhar para aquilo era como ver um trem vagaroso desaparecendo numa curva lá longe; a mão direita brincava com as franjas da cúpula do abajur, enquanto a esquerda afrouxava a gravata; apesar de tudo, não havia outro lugar em que gostaria de estar naquele momento, sentado naquela poltrona, de frente para a cama em que ela dormia – os cabelos por todo o travesseiro, os braços e pernas derramados, a pele tornada pluma pela bondade da luz; o homem acariciou o tecido roto da poltrona como se acariciasse aquilo que via; o sono tranqüilo ditava o ritmo pesado da respiração; ela respirava como se o mundo se abrissse todo – sincero e sorridente – para aqueles que não têm medo e, acima de tudo, não têm o que temer; aos poucos, na ponta dos pés, o som da respiração – quase, quase inaudível – alcançou o homem em sua poltrona e tateou-o com delicadeza, percorreu seus dedos inquietos, seus braços, até chegar na garganta e a partir daí deslizar até o ventre, onde então aninhou-se e passou a difundir seu ritmo cadenciado por todo o corpo; era como se o homem estivesse preso à mulher por uma linha invisível que, a cada expiração, ficava um pouco menor; quando a linha ficou curta demais, teve de se levantar; escorregaram, relutantes, os dedos pelo tecido gasto; cada passo seguia no entretempo da respiração; ali, enfim tão perto, tirou o paletó e colocou-o ao pé da cama; num gesto um pouco nervoso, afrouxou ainda mais a gravata; aproximou-se; levou o nariz para bem perto dos cabelos da mulher, percorreu seu pescoço, seus ombros; muito de leve, tocou seu braço; ela se mexeu, inquieta, ainda dormindo; virou um pouco a cabeça para o outro lado; o ritmo foi interrompido, a respiração mudou, a linha partiu-se; a luz tornou-se transparente demais, clara demais; as flores desenhadas nas paredes emergiram irremediavelmente esfaceladas; uma gota de suor escorreu pelo meio das costas; era – ou parecia ser - um domingo, e a frase de billy jack era tão, tão tola; tudo o que estava fora daquele quarto era uma memória longínqua, um sussurro no escuro; o homem afundou os dedos no outro travesseiro, apertou até a dor subir pelo punho; quem dera derramar também seus braços e pernas junto a ela, quem dera, quem dera; trouxe o travesseiro para perto de si, o rosto da mulher estava escuro contra a luz do abajur, a boca ligeiramente entreaberta, suspendeu o travesseiro, sim, deveria ser mesmo um domingo, apertou o travesseiro com toda a força, sim, de uma vez por todas a linha havia sido rompida, a mulher debateu-se, as unhas arranharam em meio ao desespero, as pernas chutaram em espasmos, ele apertou com mais força, os dedos dela cravaram-se nos braços dele, o novo ritmo era ditado pelos gritos abafados – então os dedos soltaram-se e os braços penderam com uma graciosidade que nunca tiveram em vida.

Limpou o suor da testa. Colocou o paletó. Arrumou a gravata. Tirou o travesseiro da mulher e beijou-a com amor redescoberto. Apagou o abajur. Pensou um pouco e acendeu-o de novo. Abriu a porta e saiu.

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