23 março, 2008

Violeta

A música parecia ser a única coisa real ali dentro. Ela espiralava no ar, lenta, sonolenta, sonâmbula, só para então ressurgir furiosa, impetuosa, impiedosa.
Absurdamente doce, apesar de tudo.
Ele gostava do jeito que as cordas do contrabaixo vibravam, tornando-se um borrão sob os dedos do músico. Gostava de como se criava o som a partir do indiscernível.
Havia algo de reconfortante em sentar-se em uma daquelas cadeiras carcomidas e, com os olhos fechados, seguir a trilha das notas que exalavam do contrabaixo. Ouvi-lo era como ouvir passos a distância. Como ouvir passos em sonhos.
Para chegar até ali, o homem havia seguido por ruas inúmeras, pelas inúmeras ruas da cidade, ruas molhadas de chuva em que se refletiam os faróis e as luzes dos carros, como uma impressão difusa e úmida de olhos vidrados.

Ali dentro, as mesas e cadeiras estavam protegidas pela penumbra suave. De um lado, o palco em que os músicos tocavam banhados por uma luz amarela e pesada como a lua lá fora; uma luz que dançava por sobre as superfícies, as peles, as madeiras, os metais, o som. Do outro, atrás do balcão, o grito histérico dos néons ressoava através dos copos e taças enfileirados nas prateleiras. O vidro amplificava a luz, e também a distorcia.


O homem estava no carro, tamborilando os dedos no volante. Tinha tido o cuidado de estacionar a uma distância segura, em um lugar em que se via a rua toda. A rua se abria para ele, inconsciente. As pessoas andavam por ela, iam para onde deveriam ir, para onde queria ir, e não sabiam, jamais poderiam saber que ele estava ali.

Em um dos prédios baixos, uma mulher abriu a cortina, e seus olhos varreram a paisagem enquadrada pela janela. No carro, o homem já estava com a câmera em mãos.

A mulher debruçou-se sobre o parapeito.

Essa foi a primeira foto.

Então um homem surgiu atrás dela. Ela se virou.

Essa foi a segunda foto.

O homem avançou alguns passos e lhe tomou a mão. Seus lábios se mexeram silenciosos e a mulher riu, mas não era possível ouvir sua risada.

Foto.

O homem puxou a mulher para perto de si com um único movimento fluído, despreocupado.

Ela riu de novo. As bocas se juntaram, no meio do riso que não se podia ouvir.

Foto.

Os dois giraram, enlaçados. O homem estava de costas para a janela. O dedo já pressionava o botão da câmera, prestes a disparar, quando de súbito a mulher abriu os olhos.

Essa foi a última fotografia.

Só depois, sob a luz vermelha do quarto escuro, é que viu que a mulher, do outro lado da rua, olhava diretamente para a câmera. Ele sabia que ela não poderia tê-lo visto, mas aquela ilusão, aquele acaso tornava a fotografia impossível, intolerável.

O pianista jogou a cabeça para trás, o pescoço uma curva gentil. Os olhos estavam fechados, apertados. As mãos deslizavam ágeis pelas teclas até que, seguindo um tropeço no ritmo, se suspenderam no ar acima do teclado, trêmulas. No instante seguinte estavam de volta, como se nunca tivessem parado. As pálpebras se fecharam com mais força.

De qualquer forma, tocar era sofrido.

Ele havia tirado o chapéu assim que passara pela porta. Encontrou diante de si as familiares cadeiras e mesas, o palco amarelo e o homem atrás do balcão, que levantou os olhos por um segundo apenas, antes de voltar a limpar um copo com um pano encardido.

Caminhou até uma das cadeiras e sentou-se, colocando sobre a mesa a câmera e a fotografia terrível. Por alguma razão, não conseguia se separar dela – andava com ela no bolso e, apesar de evitar vê-la, às vezes não resistia. Então era como se seus olhos queimassem com uma dor aguda, e ele a guardava de novo, limitando-se a tocar nela com as pontas dos dedos.

O homem continuava absorto em sua limpeza com o pano sujo; ali do lado, uma mulher debruçada no balcão, a cabeça pousada nos braços. À sua frente, um copo pela metade.

A voz do saxofone irrompeu numa única nota, límpida e triste. Ele agarrou a fotografia.

Atrás do balcão, o outro homem parara de limpar, e olhava para o palco com as pálpebras pesadas, como se admirasse um horizonte distante. Sua figura estava escura contra a luz fria dos néons, que parecia irradiar dele como um halo sinistro.

No rosto da mulher, uma lágrima escorria ao ritmo do blues. Ah, nada como a violência sutil e corrosiva do amor e das violetas.

Se o que a corroía fosse uma dúvida, talvez ele pudesse ajudar. A suspeita e a imaginação são as mais cruéis, pensou, mas eu poderia acabar com isso. Trazer a prova. Destruir as dúvidas. E nem cobraria nada. Não cobraria dela.

Seria mais uma fotografia terrível?


Num movimento sincopado, os sons agudos e lânguidos do piano embalam a base tribal do baixo, por sobre a qual desliza o lamento do saxofone. A música ondeia no palco amarelo; dilata-se e contrai-se, espalha-se pelo ar, incerta.

O homem voltou a limpar com seu pano encardido.

A mulher não está mais lá. No balcão, apenas o copo vazio.

O homem pega a câmera e, nos braços da penumbra, tira uma foto do palco. Mais tarde, no quarto escuro, perceberá como as sombras dos músicos parecem fantasmas à espreita, e como as cordas do contrabaixo se congelam imóveis e curvas em sua distensão.

Mas neste momento tudo é sombra, exceto talvez o que se pode ouvir.

Pousa a câmera na mesa. Hoje, e apenas hoje, ficarei aqui, onde o amanhã não precisa existir.

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15 março, 2008

Eternidade

O Senhor Ilustre Catedrático parou diante do espelho e posou. Tirou o pó dos ombros, do cocuruto e dos bicos dos sapatos. Vestiu a beca, finalmente. O preto sob o púrpura lhe caía bem, ressaltando suas feições e cabelos alvacentos. A eterna repetição daqueles movimentos fazia com que ele sentisse que fora ontem a última vez que ele portara aquelas vestes quase sacerdotais; mas, na verdade, ele sabia que já fazia algum tempo.

Ah, mas nada substituía a sensação de entrar no auditório, naquele Templo da Razão, pela porta localizada atrás do palco. A visão frontal das cadeiras da platéia, envolvida por veludo púrpura. Não era inesperado o uso constante da palavra imponência.

Recentemente, no entanto, aquele mesmo catedrático que não deixava de se deslumbrar com a sua vista privilegiada, passou a notar algo que se poderia chamar de muxarabiê* se impondo entre o palco e a audiência.. Quando mesmo foi abandonado o código de vestimenta para os alunos?

Então, já sentado à frente de seu espaldar alto, ele sentiu aquele vazio do lado esquerdo. O que acontecera ao outro ilustre catedrático a quem aquele assento se destinava? Muitos haviam morrido, outros simplesmente desistiram.

Antes, porém, que ele pudesse pensar ele mesmo em desistir ou morrer, o soar do início da cerimônia o interrompeu. Seria bela, como sempre. Todos os cumprimentos cerimoniosos, as formalidades e o rebuscamento lhe pareciam, também, de certa forma acolhedores. Apesar de, sempre, imponentes.

À hora do primeiro pronunciamento, todos se mostraram enlevados. Foram, de fato, belas palavras; o ambiente, com seu pé direito tendendo ao infinito não pôde deixar de demandar o uso das palavras “alarido”, “patuscada” ou, quiçá, “quiçá”.


De repente, o Senhor Catedrático foi arrancado de seu transe por uma moça de uniforme. Então eles estavam servindo café durante a cerimônia, agora. Uma inovação muito prática, certamente. Porém, o café talvez não fosse eficiente para evitar outro daqueles estados hipnóticos, já que ele reparou que estes eram induzidos pelo ritmo regular do piscar de uma das lâmpadas de um dos castiçais.
Durante a adoração de um grade literato cuja imponente imagem se encontrava atrás do palco, mais uma reflexão acometeu-lhe: como eram abertas as majestosas cortinas localizadas a uma altura inalcançável? Com certeza alguém saberia como. Foi então que seus olhos cruzaram com os de alguém na platéia, entre duas expressões de disfarçado enfado, que perfuravam as mesmas cortinas com sua concentração. Sim, mais alguém refletia sobre a mesma questão.

O Catedrático tomou displicentemente mais um gole de seu café e soube que, por essas e outras razões, toda aquela imponência continuaria a ser repetida e apreciada para sempre.

*palavra de origem moura que designa “balcão em balanço na fachada de uma construção, protegido de cima a baixo por gelosias, para resguardar da luz, calor e devassamento a partir da rua” (Houaiss)

01 março, 2008

DON'T BLUSH… LOOK BEFORE YOU FLUSH!

24/02/2008 - 14h38
Escocesa eleva vaso sanitário a estrela de programa de TV
Marianne Piemonte e Paulo Ribeiro
da Revista Folha (A Folha de São Paulo)

Quem ainda não viu, já ouviu falar daquela senhora que aparece na tevê mexendo no cocô alheio com um palito de sorvete. Trata-se da nutricionista holística escocesa Gillian McKeith, 40, do programa "Você É o que Você Come", transmitido no Brasil pela GNT e em mais 34 países.

Apesar de provocar ojeriza em muitos espectadores, o programa tornou-se um hit no Reino Unido e a apresentadora virou porta-voz da campanha "Don't blush, look before you flush" ("Não core, olhe antes de dar descarga"), que promove ações para prevenção do câncer de intestino. Não por acaso, o assunto ganha mais espaço. Esse é o segundo tipo de tumor maligno que mais acomete homens e mulheres nos centros urbanos do mundo.

Apesar do trabalho malcheiroso -ela mesma conta que chega a usar até três máscaras durante uma visita-, Gillian tornou-se uma celebridade. As pessoas fazem fila e mandam cartas para receber suas visitas em casa. Tanta fama gerou polêmica no "Guardian", tradicional jornal inglês. Ben Goldacre, médico que escreve semanalmente a coluna intitulada "Bad Science" (Má Ciência), travou dois rounds com a loira sobre os métodos pouco ortodoxos de Gillian ao tratar questões médicas.

A Revista teve uma instrutiva e divertida conversa com a nutricionista por telefone. Ao final, Gillian mandou um recado: "Se seu trânsito intestinal vai bem, antes de dar descarga, dê tchau ao seu cocô e um tapinha no bumbum para congratulá-lo. Isso, sim, é ter saúde!" Como diriam os ingleses: "cheers".

Por que e quando você começou a trabalhar com nutrição? Estava sofrendo com minha saúde e fui diagnosticada erroneamente inúmeras vezes. Na época, vivia com uma enxaqueca interminável. Foi um guru espiritual que teve a habilidade de ver dentro do meu corpo. Sei que soa maluco, até eu mesma achei na época, mas ele me orientou a seguir o caminho da alimentação saudável. Foi essa iluminação que me fez perceber que queria me especializar no campo de saúde e nutrição.
Por que analisar cocô? Em minha clínica, tenho usado cocô como parte analítica de meus clientes por 15 anos. É parte vital no método de tratamento. Preciso ver o cocô para obter uma visão geral do que acontece no organismo deles.
Por que é necessário olhar as fezes antes de dar descarga? Para ver como está a cor, tamanho, formato, textura e cheiro. É uma análise que fala muito de sua digestão e do que se passa no seu organismo. Você deve olhar sem medo ou vergonha.
O que podemos observar sobre a saúde com tal tipo de análise? O estado do fígado, a hidratação do corpo, o tipo de comida que se está comendo e a qualidade da digestão. Se a mastigação é apropriada, se faltam nutrientes em seu corpo, se há bactérias ruins ou deficiência em alguns tipos de gorduras vitais ao organismo. Vermes, parasitas, problemas no cólon. A lista é longa. Cocôs muito malcheirosos, que deixam marcas na privada, são problemáticos. Assim como em bolinhas, pálido, mole, fino ou despedaçado.
O que se deve analisar? Deve-se ver se há pedaços de alimentos, se vai bem com a descarga ou se bóia. Quantas vezes você se limpa com o papel higiênico? Se passar mais de cinco vezes o papel é sinal de que precisa de mim. Olhar o cocô pode salvar a sua vida. Sangue nas fezes pode ser hemorróida ou algo mais sério. Os participantes do programa que têm o cocô mais fedido são os que comem sempre "junk food". Geralmente, tenho que usar três máscaras e, ainda assim, o cheiro é horrível.
Como deve ser o cocô perfeito? Deve ter cor de castanha-da-índia. Preto ou amarelo não me deixa feliz. Deve ter o formato de salsicha. O ideal é que fique atado ao bumbum assim que alcança a água. Um bonito, longo e grosso cocô. Não deve ser muito fino nem ter um cheiro forte, daqueles que fazem você sair correndo do banheiro. Não deve haver pedaços de comida ou ser muito quebrado.
Qual o segredo para o intestino funcionar bem? Os alimentos que ingere, quanto de água toma-se diariamente e exercícios. Uma boa sugestão é tomar um copo de água morna toda manhã, seguido por uma xícara de chá de urtiga e uma salada de frutas. Também ensino meus pacientes a abaixar lentamente (como se fossem ficar de cócoras), antes de se sentarem no vaso. Isso irá criar o movimento de ondas no intestino para que o cocô saia confortavelmente. Outra idéia é arrumar um banquinho de 30 cm de altura. Coloque os pés no banco quando sentado na privada, isso estimula uma posição que proporciona evacuação completa. Se não tiver o banquinho, use pilhas de jornal.
Como seus amigos e familiares reagiram quando começou a analisar cocô em rede nacional? Minha mãe ficou horrorizada e me telefonava para dizer que eu estava acabando com os jantares dela. Uma das minhas filhas fica muito envergonhada quando vai à escola no dia seguinte ao programa, pois os amigos sempre dizem 'sua mãe estava cheirando cocô de estranhos ontem à noite!', mas ela entende que é em prol de uma boa causa.