Senhor de Peruíbe IV
-Agora que já fizemos a fogueira, temos que descobrir se isto é mesmo uma ilha. Se não for, não vão demorar a nos procurar. Se for... – não chegou ao final da frase – de qualquer forma, temos que ir explorar. Acho que deveríamos ir em três, mais que isso e vai virar bagunça. Vou eu, o Honório e... – olhou para o círculo de meninos ansiosos – e Alexandre.
O menino magro levantou-se e foi até o Caio, os olhos brilhando.
-Eu vou – disse –sou bom de localização e geografia em geral. Posso ajudar.
O trio já se afastava pela praia quando Caio percebeu que alguém os seguia. Virou-se e deu de cara com Porquinha.
-Eu também quero ir – pediu ela.
Caio suspirou.
-É melhor não. Já vamos nós três.
-Mas sou eu que estou com você desde o começo! – insistiu, as bochechas e orelhas muito vermelhas, os olhos começando a lacrimejar.
Caio abriu a boca mais uma vez, provavelmente para dizer palavras de consolo, quando foi interrompido.
-Não queremos que você venha. – era a voz de Nonô.
Os enormes olhos de Porquinha pareceram se alargar ainda mais, e a menina parecia a beira do choro.
-Não é isso – começou Caio, tentando remediar a situação – é só que a gente acha que você pode ser mais útil cuidando dos meninos menores, perguntando seus nomes – e girou sobre os calcanhares, sem coragem de encarar Porquinha por mais tempo.
Os três foram andando pela praia, pisando com satisfação na areia branca e quente. Era de fato uma paisagem bonita: areia, mar e floresta até quase o horizonte. Iam quietos; cada um imerso em seus próprios pensamentos.
Algum tempo depois, os três chegaram a uma superfície rochosa; a areia macia aos poucos se transformava em pedrinhas e logo a frente havia rochas grandes cor-de-rosa, empilhadas umas sobre as outras, estendendo-se como um braço até a alguns metros dentro do mar.
-Parece glacê de bolo – observou Caio.
Mas Nono não estava prestando atenção. Ele olhava fixamente para a floresta.
-Temos que ir pelo mato – disse, apontando – só assim dá pra chegar lá no topo e ver tudo.
Seu tom de voz não admitia discordâncias, e os outros dois meninos limitaram-se a segui-lo.
Por baixo da sombra das arvores era consideravelmente mais fresco, e foi um alívio estar ali, depois do dia todo sob o sol quente. Andavam em fila indiana, Nonô à frente. Quase tropeçaram quando ele parou bruscamente, uma mão levantada em tom de aviso. Podiam ouvir uns barulhos indistintos... Eram guinchos desesperados.
Nono levou a outra mão ao bolso da bermuda e tirou de lá, para a surpresa dos dois meninos, uma faca. Não era muito grande, mas a lâmina brilhava na meia luz da floresta.
Descobriram, pouco a frente, um leitãozinho enroscado em cipós, contorcendo-se convulsivamente, tentando escapar das garras de hera. Seus guinchos eram altos e estridentes.
Honório levantou a faca ainda mais alto – o golpe seria mortal. Nos olhos do porquinho só havia o mais desesperado terror.
Então o leitão conseguiu escapar, e sumiu por entre as árvores.
Honório ainda ficou segurando a faca no braço erguido por alguns segundos, o rosto, normalmente rosadinho, muito branco.
-Eu estava escolhendo um lugar – balbuciou – eu só precisava de um momento para decidir onde pegar o bicho.
E cravou a faca com força em uma árvore. Da próxima vez não haveria mercê.
***
Caio, Alexandre e Honório continuaram pela trilha da floresta, que se tornava cada vez mais íngreme.
Finalmente chegaram ao topo. Estavam cansados, mas felizes: tinham conseguido. Lá de cima tinha-se uma boa vista panorâmica.
- Não dá pra saber se é uma ilha – disse Caio – a floresta vai até o horizonte.
-Talvez seja só uma ilha grande – retorquiu Nonô.
-Talvez... O que você acha, Alexandre?
Mas o menino não respondeu. Ele estava de costas, olhando para a direção de que vieram.
-Fogo – murmurou, os olhos arregalados – fogo...
Caio e Nono agora viam também. Ao longe, meio quilômetro quadrado de floresta ardia em chamas. As árvores estalavam como que com dor e desabavam, para logo serem consumidas pelas línguas vorazes do fogo.
Os três ficaram imóveis assistindo à destruição por apenas um segundo; depois viraram e correram o mais rápido que puderam.
***
Antes mesmo de chegarem perceberam o calor que vinha do incêndio e que se espalhava pelo ar.
Os meninos menores estavam encolhidos do lado da pilha de cinzas que fora a fogueira, assustados. Só havia uma figura de pé, escura contra a luminosidade ferina do mar de fogo.
Era Porquinha.
Quando o trio de exploradores chegou mais perto, ela se virou bruscamente, o rosto muito vermelho.
A verdade é que Porquinha tinha pouco mais de um metro e meio, mas, fosse pelas sombras lançadas pelas chamas naquele fim de tarde, fosse pela raiva que emanava da garota em ondas quase palpáveis, a questão é que ela parecia ser muito maior.
-Era uma fogueira o que vocês queriam? – gritou – pois aqui está a sua fogueirinha!!!
No mesmo momento, a poucos metros dali uma árvore estalou e explodiu, lançando trepadeiras e cipós por todos os lados, fazendo os meninos até então encolhidos saírem correndo, gritando “as cobras, as cobras! O monstro-serpente!”
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